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Querido Pai Natal

...quem está podre de rico, são uns tais professores, que para além dessa grande abastança ainda têm a veleidade de não quererem fazer quase nada. (Pelo menos é o que se diz para aí à boca cheia.) (...) São uns malandros, Pai Natal, a viverem à custa do Zé Povinho! Uns exploradores!

O que eu mais apreciaria que este ano me pusesses em cima do micro-ondas, era, sem dúvida, um saco enorme de dinheiro! Tu, que conseguiste esse milagre de te vestires de vermelho vivo para fazeres publicidade a uma bebida indubitavelmente nascida na essência da sociedade capitalista, hás-de saber puxar por esses pêlos ancestrais da tua barba branquinha e, reflectindo profundamente, encontrar maneira de resolver este assunto na tua Fábrica das Verdades, lá no Pólo Norte.
Não, o dinheiro não é para mim; não preciso, não quero, prefiro esta paz de ir gerindo a vida com o q.b.  A minha intenção é cometer uma boa acção e distribuir as moedinhas pelos pobres deste país, que, coitados, não têm feito outra coisa senão queixar-se: certos políticos, alguns colunistas e também uns capitalistas ? esses desgraçados que dizem estar em extinção ? nomeadamente uns tais banqueiros cujos lucros ?diminuem? a olhos vistos, sobretudo nos bolsos dos respectivos clientes. Falta dinheiro no norte e no sul, à esquerda e à direita, na terra e no mar, enfim, por todo o lado!
Parece, porém, que quem está podre de rico, são uns tais professores, que para além dessa grande abastança ainda têm a veleidade de não quererem fazer quase nada. (Pelo menos é o que se diz para aí à boca cheia.)
São uns malandros, Pai Natal, a viverem à custa do Zé Povinho! Uns exploradores! E os que trabalham na Escola Pública, cem vezes pior! Vivem naquelas escolas luxuosas, em gabinetes de trabalho que parece que até têm frigorífico com bebidas incluídas! E Kitchnet e tudo! As salas de aulas são todas do último grito! Vidros duplos, portas blindadas, aspiração central, aquecimento e ar condicionado, tudo do melhor! Já para não falar na decoração! Os cortinados, a renda inglesa, a mobília toda em cerejeira, os estofos...
E há ainda os alunos, claro; tudo gente bem alimentada, perfeitamente adaptada à cultura da escola. Sem problemas sociais nenhuns; não há nada a resolver. É uma profissão em que não há qualquer desgaste, físico ou psicológico..
Estes professores nunca precisam de comprar material para alguns dos seus alunos ou para poderem trabalhar condignamente. Não! Têm tudo ali à mão. Se os alunos não trouxerem, a escola tem. Não necessitam de pagar muitas das vezes as próprias visitas de estudo que organizam, não gastam dinheiro em transporte porque têm carros do Estado, telemóveis, tudo, tudo, nas ajudas de custo! Já para não falar nos portáteis?
E dizem também que têm férias ? Ui! Uns cinco meses por ano! Não trabalham à noite, não têm reuniões? Têm assim aí umas seis turmas, o que significa somente cerca de 150 alunos e resolvem todo esse trabalho num ápice: numa hora preparam as oito aulas das turmas dos 7º e 8º anos, noutra hora as dez aulas das turmas dos 10º e 11º anos; numa hora corrigem os testes de uma turma, noutra avaliam os trabalhos em grupo de outra, em apenas meia hora vão às bibliotecas ou às livrarias procurar bibliografia e outros materiais, noutra meia hora falam com um ou outro aluno ou recebem um telefonema de um pai, mesmo sem serem directores de turma? Fazem tudo isto em apenas cinco horas! E ainda lhes sobram duas, para poderem descansar. Isto é que é sorte! E consta que às vezes ficam doentes e têm que faltar a estas maravilhosas (ins)estâncias.
Mas não, ainda não estão contentes, os maganos! Queixam-se por lhes terem eclipsado parte da carreira e por lhes proporcionarem todas estas benesses até aos 65 anos! Pelo menos? E não querem tomar conta dos meninos? Eles que, para além de tanto pessoal auxiliar, ainda têm enormes equipas de enfermeiros e médicos, psicólogos, assistentes sociais, animadores culturais! Que tratantes!...
Ninguém está bem com o que tem e é bem verdade.
Parece que são poucos os docentes diferentes destes? Um ou outro, mas coisa pouca, sem significado para as estatísticas?
Vão trabalhar, malandros! Assim é que é! Os professores que paguem a crise! Homessa!
Olha, Pai Natal, a carta já vai longa. Não te esqueças do meu pedido; não é para mim? e para a minha escola, então, muito menos. Precisamos lá!
É tudo para esmolas?
Cuidado com os trenós.
Bom 2006, já agora!


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 151
Ano 14, Dezembro 2005

Autoria:

Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário
Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário

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