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A Crítica Desportiva

O anti-benfiquismo e o anti-portismo são duas psicopatologias que é preciso erradicar. O amor ao clube não tem de ser patológico, ou eticamente condenável.

Há a crítica-recensão-de novidades, isto é, a crítica que abdicou de qualquer tipo de teorização e queda-se por uma intervenção publicitária, por uma bajulação acéfala e, por vezes, procurando favores e benesses. Há a crítica-dos-ressentidos, sempre com a arrogância dogmática da condenação; sempre com a insolência de quem tem, nos lábios, a última palavra; sempre ao serviço de grupos, capelinhas e sacristias. Há a crítica-sapiente-e-honesta, ou seja, a dos que sabem que todas as obras humanas são inacabadas, imperfeitas, que não há erros puros, nem verdades puras, pois que o trigo e o joio crescem inextrincavelmente unidos. O crítico tem, assim, limites que nascem da consciência dos seus próprios condicionalismos e de uma grande compreensão pelo humano. O crítico há-de ser, antes do mais, o auto-crítico, o que tem presente que as suas normas, as suas opiniões, porque são suas, não atingem a complexidade dos problemas, são possivelmente enganosas. Por vezes, observa-se, com tristeza, que a vontade de dizer mal é superior às razões por que se fala e se escreve. E, assim, há demasiada má fé. Em Portugal, nem a crítica literária se recomenda. As magníficas recensões críticas de um Times Literary Supplement, ou de um New York Review of Books não a vemos por cá. E daí o aplauso pacóvio que se tributa ao Paulo Coelho, à Margarida Rebelo Pinto e outros mais. E até aos que julgam que a poesia, em Portugal, começou com o Gastão Cruz, ou a novela com a Rita Ferro. Que bom que seria que, no nosso País, se encontrassem críticos da linha de Sainte-Beuve, ou Silone, ou Claude Roy, ou António José Saraiva, ou Hernâni Cidade, ou Óscar Lopes. Mas não! Muitos dos nossos críticos integram-se no jogo das editoras, dos grupos de pressão, das castas estratificadas numa sociedade onde abundam os tartufos.
A crítica desportiva, em Portugal, que tem três jornais diários ao seu serviço, com diminutas excepções é mal concebida e mal aceite. Há nela um proliferar de novos deuses e novos mitos e ainda um ?anti-portismo? e um ?anti-benfiquismo? doentios. E de tal maneira que, quando se critica o S.L.Benfica e o F.C.Porto, parece inevitável o receio de ser-se acusado de parcialidade e unilateralidade. O programa Bancada Central, da TSF, da autoria e orientação de um extraordinário jornalista e locutor radiofónico, o Fernando Correia, revela bem o anti-benfiquismo de alguns portistas e o anti-portismo de alguns benfiquistas. Ora, tanto o F.C.Porto como o S.L.Benfica, são dois clubes com uma história que merece respeito e podendo ter futuro, tanto um como o outro, por maior força que façam os milhares de patetas que sobrevivem de ressentimentos e de quimeras e de ilusões. Aliás, todos os anti-benfiquistas e anti-portistas são, acima do mais, anti-desportistas, porque o desporto, como espaço de convívio fraterno, rejeita naturalmente a falta de sensatez e de generosidade. E não é ser sensato, nem generoso, pretender abolir dimensões fundamentais do desporto, como actividade humanizante, sob o pretexto de razões perfeitamente disparatadas. E não é ser sensato, nem generoso, promover, por todos os meios, a guerra pela guerra, o conflito pelo conflito, a tensão pela tensão, invocando embora os campeonatos ganhos, ou o valor de velhos ídolos. E não é ser sensato, nem generoso, endurecer na atitude de conservação, a todo o preço, quando o desporto evolui e o futebol, por exemplo, progride em países, onde o clubismo não é tão alienante e os discursos dos dirigentes não atinge os paroxismos dos discursos de alguns dirigentes desportivos portugueses. Julgo bem, se não erro, que o nosso futebol necessita de uma revolução de sensatez e em que, por isso, tendam a findar os amigos-inimigos do nosso desporto. O anti-benfiquismo e o anti-portismo são duas psicopatologias que é preciso erradicar. O amor ao clube não tem de ser patológico, ou eticamente condenável. Antes de optar, é preciso discernir ? e quem pensar um pouco há-de notar que o anti-benfiquismo e o anti-portismo são dois aspectos do culto ao ridículo, que só pode gerar um contentamento ignóbil.
A crítica desportiva deve ter, além do mais que também é necessário, um duplo objectivo: reflectir e  provocar à reflexão. Reflectir sobre alguns dos factos e tendências do mundo do desporto (que são eminentemente axiológicos e políticos) para perspectivá-los, criticá-los e humanizá-los. De tanta informação desportiva, é bem possível a sua banalização. Ponderar, buscar a significação e o sentido da prática desportiva é, de facto, menos cómodo do que uma conversa previsível, superficial e apenas eivada de sensacionalismo. O acto de fazer vir à consciência o cientismo e o economicismo por que se rege a hodierna prática desportiva, a mais publicitada e propagandeada que, normalmente, nem dá saúde, nem educa ? deveria ser o objectivo primeiro da crítica desportiva. E depois deveria também ensinar a manter abertos os canais de comunicação, em todas as direcções, partindo do pressuposto, válido hoje mais do que nunca, que o desporto deve procurar, no vasto mundo da política, a sua própria razão de ser. Os agentes do desporto não explicam toda a realidade desportiva. Só sabe de desporto quem sabe mais do que desporto! Um outro ponto a considerar: com o desporto que aí está, desaparece o horizonte utópico, a vontade de inovar e transformar, sem os quais nenhum compromisso humano ganha significação e sustentabilidade. O desporto actual (repito: o mais publicitado e propagandeado) nada mais faz do que reproduzir e multiplicar as taras da sociedade capitalista. É só reflexo, não é projecto. Poderá ter futuro? É que não se vê futuro à sociedade donde este desporto brota, como micróbio do fruto apodrecido.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 151
Ano 14, Dezembro 2005

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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