Este mesmo título serviu duas obras de análise a dois séculos de história dos portugueses: o século XIX a Oliveira Martins (1885) e o século XX a António Costa Pinto (2005), este como coordenador e co-autor num conjunto de conceituados especialistas que observaram de vários ângulos (políticos, econonómicos, sociológicos e culturais) o percurso do povo português. Tratando todos eles de uma "história viva" que foi ou é o seu próprio tempo, há-de procurar-se nas suas análises o que sobreleva a inevitabilidade das naturais tensões ou pressupostos ideológicos para, tomando em conta e por isso que a História não é uma ciência exacta, descobrir aquilo que nelas é convergente. E na vertente em que a leitura da História nos motiva particularmente - como "escola de formação moral", no dizer de Jaime Cortesão, aliás na mesma linha pedagógica de muitos outros mestres historiadores, de antes e depois dele - para, "na interpretação do passado formular um juízo mais equilibrado entre a criação colectiva e a das personalidades representativas; entre as solicitações de carácter económico e as influências culturais e religiosas - de cuja conjuntura instável nasce o permanente devir histórico." Significativo para o nosso juízo foi encontrar, em duas obras tão distanciadas uma da outra por um intervalo de mais de um século, um denominador comum: ora uma "dúvida metódica", ora um "optimismo mitigado", o que, não chegando a incorrer no pessimismo schopenhaueriano onde todavia cabe a Vontade como elemento revitalizador de energias, também nos levaria a considerar, como este filósofo que chegou a ver em Napoleão "a Vontade feita homem" (numa manifestação de optimismo que durou até à queda do corso em Waterloo e ao seu degredo na ilha de Santa Helena): "... é a vontade que, através da continuidade de propósitos, dá unidade à consciência e liga todas as ideias e pensamentos." Em vários trechos do "Portugal" de hoje, em que se alude à "crise generalizada da sociedade portuguesa, que a denúncia de uma infinidade de crimes de corrupção financeira, económica e moral agravou neste início de século (...)", os analistas empregam o mesmo termo - crise - que se encontra também no preâmbulo que Oliveira Martins introduziu na última edição em vida do seu "Portugal" de ontem, datado precisamente do ano da sua morte, em 1894 - síntese que constitui como que o lastro ideopolítico das quase mil páginas da sua imprescindível conquanto controversa análise histórica do século XIX português. Nessa síntese, cuja brevidade não desanimará o leitor menos motivado, estão contidas as mesmas reflexões, perguntas e respostas que hoje repetem ou propõem todos os grupos sociais deste país - do centro, da direita e da esquerda - face à "crise" (para uns endémica, para outros de crescimento) que acomete o Estado e a Sociedade e que só não vê ou não quer ver quem é cego ou vive num ermo, numa ilha ou numa torre de marfim, confiado em que na hora última ocorrerá um Milagre (como o da India, Brasil, África ou CEE), ou, descrente em prodígios, tal qual - no dizer de Oliveira Martins - "os cépticos abordoados ao rifão: enquanto o pau vai e vem folgam as costas", e, hoje, o comum dos mortais: "o último que feche a porta." Crise é aliás um termo que, não se compaginando, neste momento, com a aspiração quase obsessiva de alcançar uma decantada Modernidade (qualquer que seja o paradigma escolhido no catálogo das ofertas em voga) se vê repetido nos discursos dos fazedores de opinião (também o ouvimos, há dias, no discurso do Chefe do Estado comemorativo da implantação da República). Mas esse termo é quase sempre usado como um acessório da retórica abstencionista do "politicamente recomendável", que relutaria em aditar à terapia dos "choques" fiscais e tecnológicos um talvez não menos necessário "choque psicológico" - para poupar o público aos temores e depressões que lhe causaria reflectir sobre a provável persistência de um antigo problema nacional (económico e cultural, diga-se) ainda não resolvido, sendo mais "saudável" admitir que "esta" crise é apenas um natural incidente de navegação em mar ocasionalmente brumoso e agitado, apenas um inofensivo escalracho que já não se confundiria com uma onda alterosa e ameaçadora passado que fosse o Nevoeiro e se tivesse por certos e seguros a rota e o destino. Tranquilizante será a história de Portugal quando mostra que, ao longo dos seus nove séculos de existência, o país passou por várias crises nacionais e sempre conseguiu ultrapassá-las. Porque em última instância sempre emergiu uma Vontade que não perdeu a face nem o norte mesmo quando sujeita aos dois períodos nevoentos da interdição filipina e salazarista. Menos tranquilizante será, hoje, reflectir sobre a dificuldade em dar um rosto à Vontade como corolário de "um juízo equilibrado entre a criação colectiva e a das personalidades representativas", pela ausência de um paradigma nacional realista e convicente que volte a congregar "a arraia miúda, a pequena burguesia e os letrados", - como se viu em vários períodos de turbação nacional, desde 1385 a 1974 - no qual se clarifique, de uma vez por todas, a responsabilidade que cabe ao Povo e ao Rei. Deste modo, nenhum cidadão, grupo, corporação ou classe julgaria poder omitir-se lavando as mãos por ter concluído, como o antropólogo Jorge Dias num ensaio de 1950 recomposto em 1961 ("Os elementos fundamentais da cultura portuguesa"), que os portugueses são "um povo paradoxal e difícil de governar. Os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus defeitos, conforme a égide do momento." É que sentença tão salomónica quanto enfática equivaleria a dizer que Portugal tem a sorte que lhe sai na rifa.
|