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O ?Mundo do Secundário?, esse desconhecido (III)

"...amanhã vou acordar, vou fazer a mesma coisa, depois, vou...venho pelo mesmo caminho  e vou estar a pensar na mesma coisa e vou-me vestir da mesma maneira... Fogo! é sempre a mesma coisa..."

Nas duas últimas colaborações aqui insertas, dei conta de algumas notas  que temos vindo a respigar dum trabalho de investigação (Projecto JOVALES) que tem por objecto o ?mundo do Secundário?.
Recuperando o  essencial do que, então, dizia (cf. N.ºs 148, Ag./Set05 e 146, Junho05) a propósito do tipo de relação que a população do Ensino Secundário mantém com  o trabalho escolar, lembrarei que, numa primeira leitura, identificámos três grandes tipos de população escolar: 1 ? a que se rege pelo princípio de identidade; 2 ? a que se rege pelo princípio da experimentação e 3 - a que  se rege pelo princípio da estranheza.
De passagem, seja dito que, relativamente a cada um destes grandes tipos, outros subtipos são reconhecíveis, mas não vêm aqui ao caso. Vamos hoje deter-nos com algum pormenor na população de tipo 3 ? a que se rege pelo princípio da estranheza, dado que nos textos anteriores nos ocupámos essencialmente dos dois primeiros tipos (o princípio da identificação e o princípio da experimentação), mal aflorando o terceiro.
Caracterizámos anteriormente a estranheza como uma forma  de ?relação escolar? em que se desenvolve um duplo movimento  de indiferença entre a escola e o aluno que acaba por assumir a  dimensão de um não reconhecimento mútuo, especialmente  no que toca à mensagem cognitiva da escola. Com a expressão ?duplo movimento de indiferença? quer-se dizer que tanto por parte da escola como por parte do aluno se gera uma estrutura de relações que não se interceptam mutuamente, resultando daí uma espécie de pacto de silêncio no que respeita ao desenvolvimento do trabalho escolar. Na prática, este não reconhecimento significa explicitamente que o aluno enquanto tal não existe para a instituição e vice-versa, a escola para o aluno tende a não ser mais que um espaço de relações sociais, frequentemente gratificante como tal.
Não se pense, todavia, que esta estrutura de relações obedece a uma lógica deliberada de tipo psicológico e, portanto, culposo por parte de qualquer  das partes envolvidas. A lógica que está em causa é mais complexa e remete para um domínio de causalidade que tem tanto de sistémica, como de estratégica. Da parte da instituição escolar, o que dá racionalidade ao seu trabalho e o que determina a legitimidade da sua acção é a  obediência ao princípio da identidade, isto é, à necessidade de promover  a reprodução do ?mesmo? de modo a assegurar a maior homogeneidade possível ao nível dos produtos, independentemente das condições do tempo e do lugar, embora discursivamente, se tenda a enfatizar a necessidade de atender à heterogeneidade dos públicos escolares. Por definição, à instituição importa assegurar que todos os alunos se exprimam como aquela nossa entrevistada a propósito do significado do seu trabalho:  ?...amanhã vou acordar, vou fazer a mesma coisa, depois, vou...venho pelo mesmo caminho  e vou estar a pensar na mesma coisa e vou-me vestir da mesma maneira...Fogo! é sempre a mesma coisa...
A regularidade compulsiva garante à instituição a sua forma de existência  e  estranho seria que pudesse ser de outra maneira. Esta chamada ?ordem espontânea? impede que a instituição pense que pode ser de outra maneira, isto é, impede que se pense na realidade do outro como diferente. Da parte do ?outro?, do aluno, especialmente do aluno que ainda  o não é ? do que não se rege pelo princípio da identidade ? espera-se justamente o contrário, isto é  que  não se  reconheça  numa realidade que não faz parte de si.  A coexistência possível é, então a mútua ?ignorância? e a estranheza mais radical por parte dos alunos é aquela que se exprime em situações  que eles já  não são capazes  de identificar como incompatíveis com a escola: os telemóveis ligados em cima das carteiras em modo de silêncio, o fazer  grafittis na frente dos professores, o levantar-se para  ir deitar um lenço no cesto dos papeis  enquanto o professor expõe a matéria...
A partir daqui, a relação pedagógica só é possível através da cumplicidade e da clandestinidade institucional...mas, então, trata-se de outra escola.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 150
Ano 14, Novembro 2005

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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