?"as raízes do passado rebentam por todos os lados do nosso solo: rebentam sob a forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos sob o peso dos erros históricos. A nossa fatalidade é a nossa história."
Faz agora dois anos que neste mesmo espaço (Outubro de 2003) escrevemos um artigo cujo título - "É esta a Hora?" - fomos beber na "Mensagem" de Fernando Pessoa, mas convertendo, por nossa conta, em interrogação escatológica o que para o Poeta era uma oração de fé que remetia para o lastro da história antiga dos portugueses como para uma potencial capacidade de renascimento. Valerá a pena reproduzir esta passagem do escrito: "Então (o livro saiu em 1934, quando o Estado Novo apostava na mobilização do orgulho nacional), sentindo que o seu Povo, herdeiro de uma história secular de audácia e determinação, estava a desfigurar-se no 'fulgor baço da terra/que é Portugal a entristecer', clamava: 'Tudo é disperso, nada é inteiro./Ó Portugal, hoje és nevoeiro.../É a hora!" Ainda António Ferro, o operoso liturgista dos fastos "pré e pós-gâmicos" (como os designava Toynbee, centrando no tempo de Vasco da Gama o momento axial da história dos portugueses ) não tinha entrado na cena do providencialismo salazarista, mas já Pessoa se revelava imbuído da "receita" queirosiana de que era preciso (re)criar os deuses e os heróis de que os povos tinham necessidade, no caso português para espevitar os ânimos esmorecidos por uma monarquia esgotada e uma primeira república esvaída nas querelas partidárias e nos desatinos financeiros. Pessoa não subscreveria na íntegra o discurso proferido por Antero, em 1871, no Casino Lisbonense ( sobre as causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos), nem diria que "as raízes do passado rebentam por todos os lados do nosso solo: rebentam sob a forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos sob o peso dos erros históricos. A nossa fatalidade é a nossa história." Mas Pessoa acreditava, como Antero, que a Modernidade regeneraria Portugal de todos os erros e equívocos: hoje, ambos revalidariam a sua crença com o exemplo da "regeneração" de Espanha. Antero, como os seus pares do grupo dos Vencidos da Vida, reflectia angustiado sobre o estado de uma "raça decaída por ter rejeitado o espírito moderno", em resultado de governações desvairadas, ideias imobilistas e três séculos de viagens transcontinentais que tinham enquistado as potencialidades anímicas da Nação numa febricitante corrida aos eldorados da Índia, da América e da África - até que as "minas" se extinguiram e o país se viu confrontado consigo mesmo: a agricultura abandonada, a indústria obsoleta, o comércio frouxo, a educação atrasada, a emigração como escape da pobreza e contudo gerando com as suas poupanças os meios com que a Nação comprava no estrangeiro aquilo que não produzia e todavia já tinha sido suficiente para, nos séculos anteriores à febre atlantista (Cortesão chamou-lhe vocação), sustentar um país cioso da sua auto-estima e independência. Por fim, "é da emigração da miséria que a pátria tira depois o ouro com que salda a conta da sua desorientação económica e dos seus desperdícios financeiros" - observava Emidio da Silva, em 1917, falando das consequências extremas. Mas já no discurso de 1871 Antero tinha analisado as causas prevalecentes: "Os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem desonra, consumir no ócio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego: o que não podem, sem indignidade, é trabalhar! uma fábrica, uma oficina, uma exploração agrícola ou mineira, são coisas impróprias da nossa fidalguia. Por isso as melhores indústrias nacionais estão nas mãos dos estrangeiros, que com elas enriquecem, e se riem das nossas pretensões. (...) Nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia próspera de trabalhadores. É o fruto que colhemos de uma educação secular de tradições guerreiras e enfáticas! (...) Respeitemos a memória dos nossos avós: memoremos piedosamente os actos deles: mas não os imitemos. Não sejamos, à luz do século 19º, espectros a que dá uma vida emprestada o século 16º." A esse espírito mortal oponhamos francamente o espírito moderno." Quase um século depois de Antero (que via o "espírito moderno" na Revolução proudhoniana) e menos de meio depois de Pessoa, até Jaime Cortesão, um "atlantista" convicto, que entendia que "os Portugueses foram descobrir e colonizar terras alheias para conservar a própria", ponderava, em 1959 (vide Os Factores Democráticos na Formação de Portugal, ed. Livros Horizonte, Lisboa, 1964): "A história de cada povo, humildemente escrita, quer na glória dos seus feitos e virtudes, quer na contrição dos seus erros e defeitos, das suas Aljubarrotas e dos seus Alcácer-Quibires, não pode e não deve ser a contemplação estática do passado, mas um impulso, uma promessa, um pacto de vida para o futuro. O fim da história, considerada como ciência humana e humanística, não é uma regressão ao passado, mas uma explicação do presente, uma arte de prever e uma promessa de excelência." Convenhamos que o actual discurso histórico daqueles que aceitaram ser os mentores e os homens do leme da "viagem" para a Modernidade a que somos novamente compelidos dispensa celebrações passadistas. Mas não explica o presente nem prevê o futuro, e nas promessas de excelência (sem lastro ideopolítico que as credibilize) são cada vez menos os que confiam. Como se um Nevoeiro persistisse, insidioso ou fatal, continuando a dificultar a visão correcta dos portugueses sobre si próprios, eles que no século XIV, apesar das baias da Monarquia e da Igreja, já competiam com os povos mais avançados da Europa Ocidental e hoje, em democracia, discutem a Modernidade entre os mais atrasados.
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