Não deve surpreender que ainda perdure alguma animosidade em muitos cidadãos dos países colonizados por Portugal, com pouca ou nenhuma formação académica, ou que, possuindo elevada formação, não tenham conseguido ultrapassar aquele sentimento reactivo que o lusófilo Gilberto Freyre classificava, paternalisticamente, como uma espécie de complexo "parricida" existente nos filhos ou netos dos colonizadores, exemplarmente expresso nas famigeradas diatribes antilusitanas de outro literato brasileiro seu contemporâneo, Antônio Torres (não confundir com o actual escritor Antônio Torres, por sinal também crítico da colonização lusitana), num livro que deu brado em 1925 e se foi reeditando nas décadas seguintes, "As Razões da Inconfidência". Semelhante perturbação também agita hoje muitos cidadãos das ex-colónias de África, que ainda não digeriram o facto, para eles insólito, de um país tão pequeno e parco de recursos como Portugal ter ambicionado moldar o Mundo à sua imagem. "Tão pequena parte sois no mundo" - reconhecia Camões - mas "poucos quanto fortes, que o fraco poder vosso não pesais", certo é que - como também disse Pessoa - "fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal a mão que ergueu o facho que luziu" (...) "com duas mãos - o Acto e o Destino - desvendámos. (...) Foi alma a Ciência e corpo a Ousadia da mão que desvendou." Mas relutantes os povos "desvendádos" em reconhecer a Ousadia como o resultado de uma associação de qualidades que permitiram e enformaram a sua longa duração, preferem salientar os também inegáveis defeitos da "mão que ao Ocidente o véu rasgou" para justificar erros ou fraquezas que já lhes são próprios, remetendo as culpas para a "pesada herança colonial." Outros julgamentos se fizeram: refiram-se, no Brasil, os de figuras gradas da Cultura como Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda ou Darcy Ribeiro e, em Cabo Verde, o do actual primeiro-ministro do Governo do Partido da Independência, hoje PAICV, José Maria Neves, que não se coibiu de declarar, no simpósio internacional que ali se realizou em Setembro do ano passado para honrar a memória de Amílcar Cabral: "Infelizmente a África recomeçou mal. (...) Os principais responsáveis pelo descalabro são as elites africanas, que acabaram quase sempre por culpar o colonialismo e o imperialismo por todos os males do continente." Mais recentemente, no semanário "Agora", de Luanda, ironizava-se sobre se a "coscuvilhice" (vulgo mujimbo) não seria também uma "herança urbana da cultura portuguesa"... Todo este arrazoado vem, especialmente, a propósito de uma desassisada afirmação feita, há tempos, a um colega português, por um famoso apresentador da televisão brasileira, responsável pela "marketingização" de um programa consagrado à criminalidade violenta, de que uma das causas da grande criminalidade existente no Brasil era Portugal ter enviado para lá, enquanto colónia, bandidos e degredados... Ignorante, no mínimo, o famoso apresentador não teve em conta que toda a América serviu de colónia penal aos desavindos e excluídos das potências colonizadoras, chamassem-se Portugal, França, Espanha ou Inglaterra, mas omitiu também que logo com o primeiro governador-geral, Tomé de Souza, em 1549, as naus portuguesas carregaram - além dos condenados ao desterro e do pequeno grupo de jesuítas de que faziam parte os missionários Manuel da Nóbrega e José de Anchieta - funcionários civis, militares, agricultores, cirurgiões, barbeiros, sangradores, pedreiros, serradores, serralheiros, tanoeiros, pescadores e construtores de bergantins. Embora, mal chegados, tivessem pressa de regressar (ricos) ao Reino, - como lamentava Nóbrega em carta de 1552 - (mas muitos deles por lá ficaram, gerando "brasileiros" que deram bacharéis e revolucionários nacionalistas) não era tudo escória, portadora de uma língua "obscura e atamancada", - no dizer do primeiro Torres - que serviu, pelo menos, para fixar a identidade linguística do grande povo brasileiro e hoje serve de instrumento de comunicação a duzentos milhões de falantes nos cinco continentes. Negligenciando ou ignorando o facto de a colonização portuguesa ter sido sobretudo litorânea ("arranhando as costas como caranguejos", observava frei Vicente do Salvador, no século XVII), teria sido muito útil ao famoso apresentador conhecer a opinião de um insuspeito etnólogo e historiador alemão, Georg Friederici, citado por Buarque em "Raízes do Brasil": "Os descobridores, exploradores, conquistadores do interior do Brasil não foram os portugueses, mas os brasileiros de puro sangue branco e muito especialmente brasileiros mestiços, mamelucos. E também, unidos a eles, os primitivos indígenas da terra." Será difícil negar que estes sejam sementes ou raízes do Brasil. Por alguma razão a História brasileira plasmaria no imaginário nacional sertanejos e capitães-do-mato como Brás Cubas, Diogo Álvares "Caramuru", Jerónimo de Albuquerque, João Ramalho ou João Tibas, os quais - avocando mais uma tirada do primeiro Antônio Torres - já não eram propriamente "portugueses a relho"...
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