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Diálogos contraditórios na escola: multiplicidade de vozes, valores e sentidos

?estou em fase de aprendizado do quanto perde o professor que não desenvolve o hábito de ouvir e não  incentiva seus alunos e alunas ao diálogo.

O diálogo, fenômeno essencialmente humano nos deveria levar a duas dimensões: reflexão e ação. Assim, há que se questionar como a escola tem tratado as palavras. Coisa morta? Sombra? E quanto às crianças? A escola se abre para ouvir participar de seus diálogos?
Como professora posso dizer que já monopolizei espaços, mas estou em fase de aprendizado do quanto perde o professor que não desenvolve o hábito de ouvir e não  incentiva seus alunos e alunas ao diálogo.
Explicitarei aqui algumas de minhas descobertas iniciais ao resgatar o  papel das interações em sala de aula. Digo resgatar, pois estas sempre existiram e sempre vão existir ainda que  ?proibidas?  em sala de aula, por isso ficando ?clandestinas?.
Descobri, através do diálogo, as diversas maneiras que meus alunos tinham de ver o mundo que os rodeava, suas percepções, que muitas vezes iam na contra-mão do que eu pensava ?ensinar?. Em uma conversa em sala de aula, cujo tema girava em torno de profissões, pude ser testemunha de ricos e instigantes diálogos: um de meus alunos me dizia que gostaria de ser ?matador de aluguel?, porque era uma profissão que ganhava muito dinheiro.
A fala deste menino, que inicialmente me chocou, estava impregnada de pontos de vista e maneiras de encarar o mundo, trazia as marcas de um tempo caótico e violento, em que o ?ter mais? é enaltecido em detrimento do ?ser mais?. Para o aluno naquele momento não importava o que fizesse, mas sim quanto  poderia lhe render financeiramente o que pudesse fazer.
Diante da fala do menino, e  percebendo que para ele seus discursos eram absolutamente ?tranqüilos?, senti uma enorme preocupação quanto àquela ?normalização?. Assim, resolvi interferir, ?inocentemente? e com ares de classe dominante, conversando com as crianças acerca dos perigos das profissões que o menino estava nos trazendo. Também tentei enfatizar que tais profissões não são regulamentadas, nem aceitas como profissões, e por isso poderiam ser perseguidas pela polícia. Mas fui interrompida pelo menino: É profissão sim, tia! Você não disse que profissão serve pra ganhar dinheiro pra sustentar a família? Então... tem gente que sustenta a família assim.
Neste momento, fiquei perplexa. Talvez o aluno tivesse razão. Muitas famílias, poderiam fazer tais coisas apenas para sobrevivência. E eu me perguntava silenciosamente: E agora professora? Como dizer ao menino, que ele estava equivocado, se ele com grande astúcia e inteligência, justificava suas posições valendo-se de meu próprio discurso? Fui obrigada, a rever meus pontos de vista. Era impossível não ?enxergar? aquelas reflexões fundamentadas, não nos livros didáticos mas no cotidiano da vida do menino. O mais interessante é que por coincidência, dias depois do acontecido, ouvi de um comentarista renomado num noticiário de televisão, comentários sobre as novas profissões da modernidade, entre elas algumas citadas por meu aluno.
Posso dizer que no diálogo em sala, tentava convencer os alunos a não verem algumas profissões como ?normais? tais como traficantes, ladrões etc. No entanto, hoje percebo que tentava impor aos meus alunos a minha visão de mundo, apesar de naqueles momentos já também perceber que naquelas falas transpareciam vivências, experiências e visões de mundo. As palavras não eram ?ocas?, mas denunciavam a situação em que nossa sociedade vive. Transparecia para mim, no diálogo nascido em minha sala de aula a ligação entre linguagem e vida, entre realidade e cotidiano.
A situação me obrigava a perceber que aquele aluno não estava fora da história mas imerso nela, caso contrário, no que diz respeito às profissões agiria como autômato: eu falaria das profissões ?normais e aceitas? na sociedade e ele se calaria. Naquele diálogo confrontavam-se valores sociais, contradiziam-se vozes. Daí a sensação que me incomodava ? a sensação do desencontro: eu tentava falar a linguagem da escola, e meu aluno me trazia uma linguagem impregnada de vivências e de valores que se opunham  aos que a escola pretende disseminar;
Posso dizer que aquele menino, ao me surpreender com suas palavras, expressou um movimento de autoria de pensamento, penetrou na linguagem viva, real e por isso histórica. Acredito que é deste tipo de diálogo que a escola necessite, um diálogo repleto de vivências e experiências que ouse puxar os fios do conhecimento construído pelos sujeitos. Ou seja, como nos diria Paulo Freire: dialogicidade como essência da educação voltada para a prática da liberdade.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

Márcia Guedes da Silva
Universidade Federal Fluminense. Membro do GRUPALFA: pesquisa em alfabetização das classes populares
Márcia Guedes da Silva
Universidade Federal Fluminense. Membro do GRUPALFA: pesquisa em alfabetização das classes populares

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