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O jornalista desportivo de serviço, com a voz empolgada a condizer com as exigências da ocasião, garantia através da rádio que aquele dia seria, certamente, inesquecível nas vidas daquelas crianças. A cena não era para menos. Um grupo de meninos provenientes de instituições de solidariedade social, equipados a preceito, acompanhavam as equipas que entravam em campo onde, pouco depois, se iriam defrontar num jogo de futebol. Situações como esta, descrita por Helena Matos no editorial da revista ?Atlântico? (Maio de 2005), já são habituais nos campos de futebol onde, numa estratégia de marketing, fazem os homens da bola fazerem-se acompanhar por uns miúdos oriundos de uma qualquer instituição social para, ao melhor estilo das saudosas grandes encenações para as massas e numa espécie de homenagem póstuma a Leni Riefenstahl, levarem o povo a verter lágrimas pelas cores da bandeira, os acordes e a letra do hino, ungidos de um doce-amargo sabor belicista, em troca de noventa minutos do melhor espectáculo do mundo. Por isso, até estamos de acordo com o poeta quando ele acusa a RTP de ?falta de respeito? pela nossa selecção, por não ter transmitido a Portuguesa antes do jogo com a Estónia, trocando aqueles momentos de fulgor pátrio que nos restam, por um qualquer anúncio da pepsodente.
São os sinais dos tempos. Contudo, podem crer, o sentimento nacional de solidariedade no mundo do desporto, não desarma facilmente. Como tal, não foi necessário dar muito tempo ao tempo para que este país à beira mar, desse por si a ser brindado por tudo quanto é comunicação social com a notícia da chegada a Portugal de Martunis, o miúdo de oito anos que sobreviveu, durante 21 dias, ao tsunami que assolou o Sudoeste asiático e foi encontrado com a camisola da nossa selecção de futebol. À boa tradição portuguesa, os benfeitores da onda de solidariedade que já vinha de longe, trataram de anunciar aos quatro ventos a chegada do pequeno herói. Gilberto Madail no exercício do seu alto cargo de presidente da Federação Portuguesa de Futebol e numa solidariedade a todos os tipos notável até foi o anfitrião do pequeno Martunis, no passado dia 1 de Junho, significativamente Dia Mundial da Criança, num encontro devidamente aberto à comunicação, para que tão eloquente acto de solidariedade não ficasse no recato do segredo dos deuses. Foi também comovente ver nos mídia a imagem solidária do nosso Sargentão e de algumas Primadonas da nossa selecção abraçados ao petiz até porque, temos a certeza, aquelas imagens fizeram os portugueses trazer à flor da pele os mais puros sentimentos pátrios e recordar a gloriosa epopeia do Euro 2004 e os muitos milhões de euros cimentados em dez estádios de futebol que são autênticos monumentos à inteligência nacional, sobretudo dos nossos dirigentes. Mas mais, porque a solidariedade não se ficou por aqui! Cristiano Ronaldo num périplo asiático que parece ter sido uma loucura de solidariedade para com ele próprio por parte dos indonésios, retribuiu a visita do jovem Martunis, contribuindo, com a sua futebolística presença, para aliviar a dor das vítimas do tsunami. Com que sentimentos, se lançou Ronaldo nesta odisseia, perguntam os mais cépticos? Temos a certeza que o fez com os mesmos sentimentos desinteressados do vil metal com que sua a camisola ao serviço da selecção nacional.
Pelo seu lado, o Desporto Escolar, também numa liturgia de solidariedade, parece que, perante um Estado inoperante, encontrou a pedra filosofal do seu desenvolvimento através da solidária utilização de algumas figuras do desporto nacional. Os programas ?Megasprinter ? Escola Em Alta Velocidade? promovido pela Federação Portuguesa de Atletismo a custas da Solidariedade Olímpica (Record, 5/5/05) em que, como a imprensa diz, o objectivo é encontrar novos Obikwelus que eventualmente tenham fugido das obras para frequentarem a escola, dizemos nós, ou ainda, a ?Taça Luís Figo?, patrocinada pela Fundação Luís Figo (Record, 2/6/05) que bem vistas as coisas, na mais pura solidariedade e ao serviço de um Desporto Escolar falido de valores, de projectos e de dinheiro, ainda são a réstia de esperança para uma juventude que cada vez mais tem como os seus mais profundos anseios correr à velocidade de Obikwelu ou, se possível mais rápido, driblar como o Ronaldo ou, se possível, melhor e jogar como Luís Figo ou, se possível, ainda com mais eficiência. Por isso, os portugueses devem encaminhar os seus filhos para esta nova dinâmica neo-liberal do Desporto Escolar, até porque, com o desemprego num crescendo assustador o que lhes resta é a oportunidade de uma carreira desportiva, porque agora os rápidos cursos universitários, são autênticas pistas de velocidade pura para o desemprego.
Por isso, estes exemplos que só prestigiam o País, tal como ?nos bons velhos tempos? devem ser objecto da mais cuidada propaganda. Eles, como explica Helena Matos, numa perspectiva pós moderna de entender a vida e a sociedade, pensamos nós, passaram a estabelecer uma nova relação, por ventura mais justa, mais nobre e mais eficiente, entre o solidário e aquele que é objecto de solidariedade. Aquela de ?dar com a mão direita sem que a esquerda veja?, numa sociedade em que o que conta é o que se vê e o que existe é o que aparece na televisão, não tem qualquer significado nestes tempos de globalidade económica. De facto, hoje, a verdadeira solidariedade ou assume os reais contornos de um negócio ou não faz qualquer sentido. Deste modo, entenda-se que a solidariedade inverteu o seu próprio significado na medida em que ?apaga completamente o destinatário para fazer cair o seu sentido positivo sobre aqueles que a praticam?, como escrevia a directora da ?Atlântico?. Assim, a nova solidariedade deixou de ser um fim em si para passar a ser um meio, isto é, um instrumento de marketing pessoal em benefício dos que pelas mais diversas razões, desejam ganhar visibilidade e/ou credibilidade, através  daqueles sobre quem se dispõem ser solidários. Porque, deixemo-nos de coisas, é para si que o solidarismo deve olhar em primeiro lugar. Se não for assim, neste Mundo do deve e do haver, como é que pode existir solidariedade?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa
Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa

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