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Filhos de pescadores na escola são como peixes fora de água

A modernização e escolarização da comunidade piscatória da Nazaré

?ainda há uma distinção entre os filhos das famílias piscatórias, ou que ainda mantêm de alguma forma o padrão tradicional de educação dos filhos, caracterizado por uma maior margem de liberdade e autonomia que é dada às crianças, e os filhos de uma classe média que exerce um maior controlo sobre os tempos e os espaços das crianças.

A pesca na Nazaré foi sempre para a grande maioria dos pescadores uma vida de grande risco e poucos ganhos, ainda que a opção pelo mar fosse o destino óbvio e o espaço de afirmação para os filhos dos pescadores. Foi sempre esta a imagem que as famílias dos pescadores transmitiram aos filhos. Com o desenvolvimento económico que o país conheceu a partir da entrada na Comunidade Económica Europeia, muitos filhos de pescadores passaram a ter possibilidade de fugir à vida do mar, realizando finalmente aquilo que sempre tinha sido tentado sem sucesso: o emprego em terra. Era bastante comum entre as famílias piscatórias procurarem para os filhos, mal estes cumpriam a escolaridade obrigatória, um lugar numa oficina onde pudessem aprender uma arte, ou no comércio. E isto tornava-se uma obsessão por parte das mães que tinham visto morrer um filho ou o marido no mar.
Os filhos da comunidade piscatória da Nazaré só nos últimos vinte anos entraram efectivamente  no 3º ciclo e no ensino secundário. Até aos anos oitenta, poucos eram os filhos dos pescadores que iam além do ensino primário.
Quando no início dos anos setenta a escolaridade foi alargada para os seis anos, os filhos dos pescadores pouco aproveitaram desse alargamento: a escola pouco lhes dizia. A maior parte dos rapazes desistia antes de cumprir o ciclo preparatório; e as raparigas nem sequer estudavam para além da quarta classe. Iam aprender costura. 
Nos anos oitenta, deu-se o alargamento da escolaridade para o terceiro ciclo. Os filhos dos pescadores que acabavam o ciclo preparatório passaram a ter a possibilidade de prosseguir os seus estudos. Contudo, a maior parte acabava por desistir antes de lá chegar. O Mário, pescador de 42 anos, disse-nos que ainda chegou a frequentar o 2º ano do Ciclo Preparatório; mas não acabou: ?Quando faltava mês e meio para o fim das aulas e começava o tempo quente, o pessoal gostava de ir para a praia, e deixava de ir às aulas. Quando os pais nos mandavam ir para a escola, respondíamos: ?Não vou!?... e pronto, não acontecia mais nada?. ?A escola era uma obrigação?.
É também esta relação com a escola que Celeste Malpique encontrou nos anos oitenta  entre os filhos dos pescadores da Afurada.
«Parece-nos que as crianças deste meio piscatório, tal como os pais, não valorizam muito a escolaridade, ainda que digam o contrário. Na formação do Ideal do eu acaba por ter mais peso o modelo comportamental dos pais. Admitimos que o marcado vínculo que liga todas estas crianças à mãe reforça mais a dependência aos valores tradicionais do que Ideais do Eu promotores de mudança, mesmo quando estes valores são veiculados pela mãe» (1990: 248).
Se no início da década de oitenta havia pouco interesse em que os filhos prosseguissem os estudos, nos anos noventa há um empenhamento dos pais na formação escolar tanto das filhas como dos filhos. E isto representou um sinal evidente de modernização das famílias piscatórias, sobretudo no domínio das expectativas em relação aos filhos, e a leitura que fazem das transformações da sociedade nazarena e das oportunidades de vida e de futuro para eles. A maioria das famílias piscatórias tinha consciência plena de que a escola não garantia aos filhos uma ascensão social. O que pretendiam é que ela lhes permitisse pelo menos ter um emprego onde pudessem ganhar a vida.
Com os anos noventa, a comunidade piscatória retira, finalmente, partido da escolaridade alargada. Mas esta mudança foi possível porque tanto a comunidade piscatória como a escola se transformaram.
Alguns professores que entrevistei consideram que ainda há uma distinção entre os filhos das famílias piscatórias, ou que ainda mantêm de alguma forma o padrão tradicional de educação dos filhos, caracterizado por uma maior margem de liberdade e autonomia que é dada às crianças, e os filhos de uma classe média que exerce um maior controlo sobre os tempos e os espaços das crianças. E esta diferença de atitudes é notória, quer no acompanhamento escolar, quer no comportamento dos filhos dos pescadores na escola. Uma professora de origem piscatória dizia que as crianças da Praia são prejudicadas porque os professores as estigmatizam devido à sua origem. Segundo esta professora, mesmo os poucos que chegam ao secundário acabam por abandonar e empregar-se no comércio. E esta impressão é confirmada pelas declarações de um outro colega, para quem os alunos do meio piscatório, mais fracos, vão sendo filtrados e ficando pelo caminho. E os poucos que sobrevivem, segundo as suas palavras, matriculam-se nas opções que lhes parecem mais fáceis e não chegam a completar o secundário.

Bibliografia:
Malpique, Celeste (1990) A Ausência do Pai, Porto: Edições Afrontamento.


  
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Edição:

N.º 146
Ano 14, Junho 2005

Autoria:

José Trindade
ESE Leiria
José Trindade
ESE Leiria

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