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Sobre as imagens lugar de resistência e de domesticação

A erosão do verbo fez-se em favor do primado da imagem que, sendo a expressão da realidade pode ser também uma forma de resistência. (?)  Com a perda de prestígio da intelectualidade ficou um vazio, esse vazio que é agora ocupado, se bem que de outra maneira, pela imagem.

Uma imagem vale mil palavras. O chavão, por tantas vezes repetido, fez-nos crer numa evidência que não é necessariamente correcta: a imagem como expressão de verdade ou, se quisermos, como estabelecendo uma conexão inabalável entre o cerne do que nos rodeia e a sua expressão (como se as coisas fossem apenas o seu exterior capturado por uma qualquer objectiva).
Esta proximidade entre a imagem e a representação do mundo, uma ligação ontológica, por assim dizer, não foi sempre evidente. Existiram vários motivos para que isso fosse assim. Em primeiro lugar, por impossibilidade tecnológica, só recentemente surgiram dispositivos capazes de capturar imagens em número significativo; em segundo lugar, por esvaziamento do lugar onde por excelência essas verdades se revelavam, o verbo.
Podemo-nos recordar de projectos filosóficos em que se procurava compreender a essência da obra de arte, a essência do fundamento, entre outras tentativas do género. Havia uma preocupação em se traduzir a realidade em livro. Ora, nessa configuração cultural, a escrita era o modo privilegiado de expressar o mundo e os intelectuais tinham um papel muito mais activo na vida das sociedades que integravam.
Este esvaziamento do verbo fez-se à custa da articulação de um senso comum que sublinhava a importância dos resultados e de tudo que pertencesse à prática. Aqui a razão apenas interessava quando potenciadora de performance e de um saber tecnológico específico. Assim, existe uma perda da importância das ideias como entes válidos por si mesmos.
A erosão do verbo fez-se em favor do primado da imagem que, sendo a expressão da realidade pode ser também uma forma de resistência. Relembremo-nos que até há bem pouco tempo as formas de censura exerciam-se preferencialmente sobre a escrita e sobre os pensadores. Com a perda de prestígio da intelectualidade ficou um vazio, esse vazio que é agora ocupado, se bem que de outra maneira, pela imagem. Normalmente, as formas de resistência actuais são operações mediáticas ? recordemo-nos das acções espectaculares da Greenpeace; as manifestações; as greves de fome; mas também as acções terroristas que procuram o insólito e o inesperado.
Parece que existe uma pressão implícita para que nos transformemos em imagem. Nada existe que não seja televisionado. Quem não conseguir passar a sua morada para esse outro mundo de sombras fica irremediavelmente para trás: é aí que se jogam os poderes e as ordens políticas das nossas sociedades. Talvez por isso, as formas de censura da imagem são também mais primitivas e dogmáticas agora. Elas aproximam-se do que outrora se fazia com a escrita: imagens banidas; personagens que não têm direito a rosto mediático (um direito humano básico a consignar futuramente), entre outros exemplos. As imagens reais são verdadeiramente poderosas e podem impressionar, decisivamente, opiniões públicas. Neste sentido, elas definem um lugar que serve de instrumento de administração do poder mas podem ser, simultaneamente, um lugar de resistência e de sublevação.
Todavia, as imagens reais são objecto, também elas, de erosão. Esta erosão acontece, antes de mais, pela repetição de imagens catastrofistas onde se exibem misérias ou tragédias humanas de todo o género (a morte de Feher; a queda das Twin Towers, entre outros). Depois os documentários sensacionalistas, os filmes baseados em factos verídicos e, finalmente, os reality shows ? onde, pela primeira vez, uma pretensa realidade é comercializada de modo sistemático. Novamente, como tudo o que é relevante nas sociedades actuais, o processo de capitalização e de transformação em produto não deixou impune mais esta área da vida colectiva.
A banalização da imagem real poderá finalmente romper o vínculo que a definia como lugar de tradução do mundo e, desse modo, tornar-se domesticada. O lugar de resistência e de dominação passaria a ser apenas de controle social.
A perda de capacidade de figuração da realidade que, pela sua vulgarização, a imagem actualmente sofre engloba-se num movimento maior que poderemos denominar de virtualização das relações sociais. Como toxicodependentes que somos vamos aumentando a parada das imagens que realmente nos conseguem prender a atenção: cada vez mais reais, cada vez mais chocantes. É assim que se vai erodindo a sua capacidade de representação. É assim que se observa uma aceleração dos pseudo-acontecimentos e, com essa aceleração, uma capacidade de esquecimento do que se passou ainda ontem torna-se inevitável.
É esse esquecimento que constitui uma nova centralidade no adestramento das opiniões públicas e dos recentes mecanismos totalitários de exercer o poder que, actualmente, observamos emergir nas nossas democracias...


  
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Edição:

N.º 146
Ano 14, Junho 2005

Autoria:

Rui Tinoco
Psicólogo Clínico - ACES Porto Ocidental
Rui Tinoco
Psicólogo Clínico - ACES Porto Ocidental

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