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?Je est un autre? ? A Encenação do Passado

?As indústrias da cultura e do património (cada vez mais articuladas, deseja-se, com as actividades de criação contemporânea) criam novas profissões, postos de trabalho, emprego, mesmo se em certos casos ele é precário, temporário, mal pago.

A realidade social obviamente não é «natural», mas sim um produto historico muito particular, entre outros teoricamente possíveis. Uma combinatória, de facto, de práticas e de crenças, de comportamentos e de conceitos, uns herdados, outros adquiridos recentemente, e compondo um mosaico que levanta problemas e interrogações.
Nesse contexto, é premente reflectir sobre os sentidos das preocupações que mostram as nossas sociedades modernas ? e em particular, «sobremodernas» ?  relativamente à conservação, restauro, patrimonialização, representação (ou seja,  encenação), virados para o lazer de massas crescentes de público, de ?fragmentos de realidade? muito diversos: objectos, obras de arte, testemunhos de épocas passadas, sítios arqueológicos e monumentos, paisagens ou territórios (parques, áreas de paisagem protegida, etc.), e mesmo a própria vida das populações, «apanhadas» no seu quotidiano «típico».
Trata-se, parece, de expor, em «cápsulas de tempo», a totalidade da vivência humana, sob a forma de objectos e de espaços fáceis de ver e de decifrar, tornando «naturais» narrativas, discursos, interpretações que, não obstante, têm muito de «fabricado», ou seja, são produtos de um trabalho. Nestes sítios com frequência cruzam-se os mesmos princípios do museu (conservação e transmissão do passado), do teatro (representação do passado) e do centro comercial (consumo do passado).
Esse é um trabalho dos museólogos, dos arqueólogos, dos etnólogos, dos arquitectos, dos restauradores, dos produtores de espectáculos e outros eventos, dos artistas performativos, enfim de todos aqueles que procuram, cada um do seu ponto de vista e da sua capacidade de acção, tomar parte na organização moderna do tempo e do espaço.
O património está ligado a um sentimento de perda permanente, sentida como falta de um bem (laço) colectivo, que não seja apenas já uma herança, mas precisamente um recurso, no sentido amplo, envolvente (ambiente, cultura, etc.), um projecto mobilizador. Este recurso generalizado está, ou estaria, por definição em permanente perigo. Essa ameaça é constituída pela face, muitas vezes oculta(da), dos interesses do «desenvolvimento», isto é, da modernização e uniformização do mundo (a famosa globalização, com todos os seus paradoxos). Mas a obsessão da perda pode tornar-se um sintoma de mal-estar, se não mesmo a nostalgia de uma transcendência para sempre perdida, que nenhuma ideologia moderna, ou «grande narrativa» redentora, foi até agora capaz de substituir.
Vários discursos, ou ideologias, são detectáveis sob esta tendência patrimonialista muito generalizada.
Por um lado, encontramos um discurso nostálgico, que no fundo desejaria reservar apenas para alguns a «prática do passado», e que detesta a massificação generalizada. Aceita apenas um mínimo de intervenção nos sítios, e recorre sempre ao espectro do «vandalismo» para defender valores que considera ? muitas vezes, nesse aspecto, com inteira razão ? únicos, e portanto, em princípio, indestrutíveis. Por vezes, essa atitude desconfia mesmo da «mania patrimonial», do «peso» (obsessão repetitiva) das comemorações e dos monumentos, como se fosse possível, ao mesmo tempo, generalizar uma prática ligada intimamente ao turismo (e portanto a muitos títulos lucrativa) e mantê-la encerrada dentro de quadros de acesso e fruição rigidamente pré-estabelecidos.
Por outro lado, as indústrias da cultura e do património (cada vez mais articuladas, deseja-se, com as actividades de criação contemporânea) criam novas profissões, postos de trabalho, emprego, mesmo se em certos casos ele é precário, temporário, mal pago. Os jovens participam com (mais ou menos) gosto neste movimento, que lhes permite ocupar um lugar activo na sociedade, mesmo quando a arqueologia de emergência, ou o trabalho submetido às regras estritas do mercado, os afastam com frequência dos seus sonhos iniciais, em que um certo idealismo se misturava com a verdadeira vontade de serem investigadores, de terem uma actividade criativa. O seu discurso é, assim, muitas vezes, um discurso optimista, que se compreende tanto melhor quanto eles já nasceram na sociedade da concorrência desenfreada, do trabalho lucrativo a curto prazo, do individualismo, do sucesso, do imediato. E muitas vezes talvez não estejam totalmente conscientes de que o movimento patrimonial colabora, embora à sua maneira frágil, na uniformização do mundo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 142
Ano 14, Fevereiro 2005

Autoria:

Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP
Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP

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