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Agôn

Hoje, salvo raras excepções, os dirigentes do vértice do movimento desportivo, num egoísmo desmedido e encadeados pela ideia de infinito, (?)  pretendem realizar, neste desgraçado Portugal a caminho da banca rota, os Jogos Olímpicos, quando não são sequer capazes de organizar um simples quadro de apoios aos atletas que, no fundo, são a razão da sua existência.

Recentemente, a ?Sport Business? (17/12/04) relatou que um jogador de futebol da Liga Inglesa foi suspenso em virtude de ter tido algumas atitudes menos próprias para com o árbitro. Nada de mais normal. Quem assiste a desafios de futebol nos terrenos de jogo ou através da televisão tem de acordar que, nos tempos que correm, este tipo de situação é uma espécie de ?pão-nosso de cada dia? na dinâmica do rendimento, da medida, do recorde, do espectáculo e do profissionalismo precoce que envolve, tantas vezes até à esquizofrenia, o desporto moderno. Portanto, deste tipo de ocorrências que acontece cada vez mais frequentemente, é-se levado a pensar que, afinal, o desporto pode já não ser a tal escola de virtudes se é que, no passado, alguma vez o chegou a ser.
Os gregos antigos, pelo menos, tentaram. Ao cultivarem o gosto da luta desenvolviam o talento e a vocação através da competição (agôn) o que fez deles eficazes pedagogos. Contudo, é bom que se entenda, como explica Friedrich Nietzsche (1854-1900) o filósofo da energia vital, da vontade de poder e do super-homem, que se eles tivessem eliminado o agôn da sua vida pessoal e social, abririam as portas do Inferno pré-homérico caracterizado pela selvajaria louca do ódio e pelo prazer sádico do extermínio, cantados por Homero na Ilíada ao descrever, por exemplo, a selvajaria demente representada por Aquiles, que num acto de pura vingança arrastou com o seu carro de combate o corpo já morto de Heitor, depois de o derrotar.
A educação agonística para os gregos antigos era o bem-estar social. O jovem quando competia na luta, na corrida ou nos lançamentos nos Jogos Olímpicos, pensava na satisfação da sua cidade natal na medida em que era a glória desta que ele, através da sua, queria projectar. Até as coroas de louros que os juízes colocavam na cabeça dos grandes heróis olímpicos, estes, consagravam-nas aos deuses da sua cidade. A este estado de espírito os gregos chamavam-lhe ?areté?, uma espécie de virtude própria da nobreza aristocrática, do heroísmo guerreiro, da honra, da glória, do agôn e da vontade de vencer. Por isso, eles cultivavam a destreza e a força invulgares não só como exercício da estética e do combate leal, mas também como o suporte indiscutível de qualquer posição de liderança.
Hoje, os tempos são outros, pelo que, salvo raras excepções, os dirigentes subjugaram a dinâmica do seu comportamento ignorante ao poder do dinheiro e os atletas, para sobreviverem, passaram a dedicar as suas coroas de louros a Hermes o deus dos comerciantes e dos ladrões. Em consequência, a ?aréte? enquanto atributo próprio da nobreza perdeu-se na voragem dos interesses, do poder, da corrupção e da rebelião das massas que, até novo ciclo da história, tomaram conta do poder.
Como explica Nietzsche, ao tempo dos gregos antigos a ambição também existia, só que tinha limites e estava condicionada pela entrega concreta à causa social. Hoje, salvo raras excepções, os dirigentes do vértice do movimento desportivo, num egoísmo desmedido e encadeados pela ideia de infinito, tal qual Aquiles da metáfora de Zenão de Élea (séc. V a. C.) que acabou por não alcançar sequer a tartaruga, pretendem realizar, neste desgraçado Portugal a caminho da banca rota, os Jogos Olímpicos, quando não são sequer capazes de organizar um simples quadro de apoios aos atletas que, no fundo, são a razão da sua existência. É isto ao que chegámos, com a chegada da mediocridade mais medíocre e o oportunismo mais oportunista ao poder, que é utilizado num exercício de autêntica selvajaria económica, social e política, em prejuízo dos atletas da base à elite e do País.
O Comité de Disciplina da Liga Inglesa puniu o nosso jogador de futebol com cinco jogos de suspensão e, muito provavelmente, em honra de Hermes aplicou-lhe ainda uma multa de 50£, em coerência com um certo economicismo selvagem, falho de princípios, de saber, de prospectiva e de projecto, que tomou conta do pomposamente chamado Modelo Europeu de Desporto.
Por agora, o problema está em saber aonde é que o jogador vai arranjar o dinheiro para pagar a multa? Vai pedi-lo aos amigos? Ao Banco? Aos pais? Ao patrão? Ao Pai Natal? É que o nosso futebolista prevaricador é um jovem de 13 anos de idade que como não tem rendimentos pessoais poderá estar a ser irradiado do futebol até que venha a obter um emprego para o que terá certamente de abandonar a escola.
Em conformidade, cada vez é mais difícil aceitar as contradições do desporto moderno a funcionar numa lógica com a qual os seus valores agonistas já nada têm a ver, porque profanados não pelos atletas, mas pela cúpula dirigente da política e do desporto que com uma ilimitada sede de poder e de mordomias, na base de um falso diletantismo e da mentira mais descarada, sem a ambição nobre do agonismo quer dizer do espírito de agôn e do aréte, porque na sua generalidade, pelo seu comodismo e silêncio são coniventes com o que se está a passar, têm conduzido o desporto para o estado de degeneração acelerada de valores, de honra e de dignidade em que se encontra.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 142
Ano 14, Fevereiro 2005

Autoria:

Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa
Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa

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