Para (e com) Sara, aluna do curso de pedagogia da Feso em Teresópolis
Jorge Luis Borges em ?El libro? escreveu que ?de los diversos instrumentos del hombre, el más asombroso es, sin duda, el libro. (...) es una extensión de la memoria y de la imaginación. ? Provavelmente Borges construiu esta opinião sobre o livro - este objeto da nossa cultura - alimentando-se do conjunto de valores que a sociedade moderna ocidental lhe atribui, muito também em função da sua formação em uma família tradicional portenha para a qual livros e a leitura consistiam em um valor absoluto e, mais tarde, devido ao seu talento inquestionável para escrever, para usar as palavras e a literatura como sua maneira própria e única de intervenção no mundo. Imediatamente lembrei-me de Borges e da construção do livro como um objeto cultural, quando a professora Sara Patrícia Ribeiro Belo - educadora de uma turma bisseriada (alfabetização e 1ª série ) da Escola Municipal de Alpina, situada na zona rural da cidade de Teresópolis, no Rio de Janeiro - contou-me o episódio a seguir. A escola onde atuo situa-se numa localidade marcada por uma paisagem que tanto abriga enclaves cinematográficos, quanto imensos bolsões de pobreza. A maioria dos alunos provêm da camada mais pobre e chega à escola, muitas vezes, sem nunca ter visto um livro. Por esse motivo, sempre tivemos a preocupação de iniciar o ano letivo com um projeto que se responsabilizasse pela ?apresentação? e por criar uma intimidade entre o objeto-livro e nossas crianças. Isso que conto aqui aconteceu em Março de 2002 (um mês depois do início do trabalho com as crianças de valorização do livro em um projeto pedagógico). Certo dia, ao chegar à escola, fui recebida pelos alunos com euforia. Ao entrar na secretaria observei que eles haviam trazido para a escola cerca de 30 livros encontrados no ?lixão? de um condomínio-clube que se situa atrás da escola. Enquanto a diretora limpava e organizava alguns livros, um dos alunos, de 6 anos, me dizia: - Olha tia! Que pecado! Jogaram os livros fora! Aí, a gente pegou, né? Sinceramente fiquei emocionada com tamanho zelo demonstrado por aquelas crianças com um objeto, que havia bem pouco tempo não lhes trazia significado algum. Fiquei ainda mais perplexa ao verificar que nenhum livro era de literatura infantil e que, ainda assim, as crianças desejaram salvá-los. Está claro que a cultura, ou mais especificamente os objetos construídos e valorizados por nós culturalmente não são somente construídos por nós. A cultura é construída por nós e, ao mesmo tempo, nos constitui como sujeitos. E é esta constituição do sujeito pela/na cultura que aproxima em termos de valores Borges e as crianças de Alpina. O primeiro que tendo dedicado grande parte de sua vida aos livros e à literatura comprava livros e os amava mesmo depois de cego, como ele mesmo conta: ?Yo sigo jugando a no ser ciego, yo sigo comprando livros, (...) llenando mi casa de libros (...) Penso que el libro es uma de las posibilidades de felicidad que tenemos los hombres". Borges e as crianças de Alpina revelam que nossa relação com os livros - nossa deferência em relação a eles - está para além do fato de podermos/conseguirmos/alcançarmos lê-los. O primeiro, mesmo impossibilitado fisicamente de ter acesso a tudo o que continham os volumes que lhe enchiam a casa, continuava devotado ao objeto. Os últimos, mesmo alijados daquilo a que convencionamos chamar de mercado editorial, ou seja, mesmo sem serem a princípio sujeitos consumidores de livros, devotam a esse objeto cultural um amor incondicional que lhes move a ?salvar? os livros abandonados no ?lixão?. Borges e as crianças de Alpina identificam no livro um patrimônio da humanidade, um ícone da humanidade em nós. A questão que fica para mim, que me provoca e que não posso me furtar-me a dividir com o leitor é ?qual a importância da escola nesta construção??. No caso de Borges não tenho subsídios para identificar pontualmente sua importância, mas certamente as incursões pela biblioteca paterna somadas à formação em escolas tradicionais européias e a seu talento de escritor foram fundamentais. Entretanto, no caso dos alunos de Sara, parece-me fundamental além do trabalho de valorização do livro como produto cultural, que as professoras fazem com as crianças, identifico a valorização deste objeto cultural na sociedade, um discurso que circula não só nos meios onde as pessoas são consumidoras de livros, mas que se dissemina também de uma maneira geral naqueles espaços nos quais os sujeitos não representam necessariamente aquele leitor. É o trabalho feito na escola que gera nas crianças este amor extremo aos livros e que produz inclusive a atribuição de um significado ao livro diversa daquela como o significa sua família. A experiência das crianças do lixão de Alpina faz-me identificar na escola o poder de inculcação no sujeito dos valores da sociedade como um todo. De resto, eu que não tive contato com muitos livros na infância, que não tive bibliotecas por onde me perder, penso na minha própria atitude a cada livro novo que adquiro: meu primeiro movimento é aproximá-lo do rosto, cheirá-lo, acariciá-lo, como se a materialidade do objeto me afetasse através de todos os sentidos, me tomasse por inteiro, como se o escrito estivesse impresso não só no papel, mas também, de alguma forma, em minha corporeidade.
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