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Identidade e simulação

Muitas perplexidades hão-de afluir à  mente de quem observa criteriosamente os comportamentos característicos de algumas espécies animais: aves que percorrem milhares de quilómetros para nidificarem no mesmo lugar;  cães e gatos que se vinculam aos donos ou à casa onde nasceram ou cresceram;  melros  que marcam um território para viverem e procriarem; e alguns homens que  proclamam que "a identidade é uma coisa que se constrói todos os dias, em acordo com os lugares onde se está melhor"  (e se são intelectuais justificam, em latim, "ubi bene, ibi patria") e  não têm qualquer relutância em adoptar mais do que uma nacionalidade.
No entanto dir-se-á que é natural possuir um sentimento de "pertença" a uma coisa determinada, como lugar, espécie ou costume, e nos homens, mais amplamente, língua e memória histórica. Mas é face a estas que o simples local de nascimento, embora  constituindo,  por si só, em alguns países, um direito jurídico de nacionalidade ("jus soli"), se apresente às vezes como a componente mais aleatória do sentido de pertença, pois pode nascer-se, por mero acaso, em qualquer parte, ou até viver nela como qualquer alienígena, com total aprazimento ou não,  sem aquele vínculo, objectivo e subjectivo, que identifica um homem com o  território e o povo a que pertence, por nascença ou real assimilação do "espírito da terra", na expressão de Basil Davidson. E  pode também esse vínculo resultar de um tão intenso apego à terra dada ou prometida, que, num crucial momento de forçada separação, ao impossível sentimento de pertença equivale um verdadeiro  sentimento de perda.
Pensando nos vínculos da língua e da memória histórica, vêm à colação três exemplos de escritores para quem, tendo vivido temporariamente em África, esse espaço-tempo (a expressão é de Helder Macedo) não condicionou o seu sentido de pertença a um país chamado Portugal: Fernando Pessoa, Reinaldo Ferreira e Helder Macedo. Se do primeiro e do último, que passaram a infância e a adolescência em África (Pessoa na África do Sul e Macedo em Moçambique) não se poderá dizer, como Saint-Exupéry, "era da minha infância como de um país", de Ferreira, que foi para Moçambique já com vinte anos,  só seria lícito dizer, como Cesare Pavese, "nada é mais inabitável do que um lugar onde se foi feliz" - admitindo que o tenha sido, até aos vinte anos, em Portugal.
Resulta esta  presunção  do facto de a sua obra poética publicada em livro só conservar de Moçambique (onde morreu, em 1959, com trinta e sete anos) a referência  ao nome de uma notável  poeta moçambicana a quem dedica um poema africanamente inócuo, Noémia de Sousa. Introduza-se a curiosidade de o poema "Menina dos olhos tristes", que José Afonso (que também passou  por Moçambique) celebrizou com uma dramática toada da guerra colonial, ter sido  escrito anos antes da guerra deflagrar.
Fernando Pessoa, que só aos dezasssete anos deixou a  África do Sul, onde fez os estudos primários e secundários, nunca "regressa" ao "jardim da infância" africano, que era, afinal, o do "vizinho", e declara mesmo (valha a frase o que valer): "Nunca senti saudades da infância; nunca senti, em verdade, saudades de nada."
Também Helder Macedo, num texto autobiográfico publicado no "Jornal de Letras",  declara, a propósito de, num encontro de escritores em Maputo, um colega simpático o reconhecer também como escritor moçambicano, por causa do seu romance "Partes de África": "Tive de explicar que não muito obrigado. E recordei  os versos do Pessoa que dizem que na infância de toda a gente houve um jardim, particular ou público, ou do vizinho. A minha infância, o jardim que houve na minha infância, afinal era do vizinho."
Mas quando vemos outros escritores que nasceram em África, não vivem em África e, sendo de origem e cultura europeias, se proclamam (quiçá oportunisticamente) africanos, mas defendem a transnacionalidade, alegando que "é um mito pensar que um país define a identidade de cada um" (quiçá contando que sempre existirá um  do qual nunca serão expulsos...),  não se poderá deixar de reconhecer a dimensão ontológica do  vínculo que também a ensaísta são-tomense Inocência Mata encontra na "memória da história ligada aos lugares,  que retira densidade à trágica realidade do eterno exílio" e atenua "o amargo sabor da diáspora". ("A Suave Pátria" - 2004).
Face aos falsos apátridas que, dizendo-se "cidadãos do mundo", como Charlie Chaplin (que, tendo nascido na Inglaterra, vivido nos Estados Unidos e morrido na Suíça, nunca renegou o espírito europeu), vão desfrutando os "jardins do vizinho", logo ocorre aquela anedota obscena atribuída a Bocage, da "borboleta" saltitando sobre as "flores": "Ora me pouso numa, ora me pouso noutra..."


  
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Edição:

N.º 141
Ano 14, Janeiro 2005

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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