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O desenvolvimento local entre expectativas e dilemas

?num passado não tão distante (?) a noção de desenvolvimento era associada sobretudo à ideia de desenvolvimento económico, que, prometia-se, haveria de produzir bonança material para então garantir estabilidade e comodidade para todos. (?) a noção de desenvolvimento económico foi deslocada (?) sendo substituída pela ideia de crescimento. Crescer economicamente não significa distribuir os resultados daí decorrentes.

Não é necessário gastar muita tinta para mostrar que a ideia de desenvolvimento finca raízes no pensamento ilustrado europeu. A crença numa visão unidimensional e teleológica da história encontrava o seu combustível por aí. E, para reconhecer isso, não é preciso, como querem alguns, deitar fora toda a herança da modernidade e trajar-se de irracionalismo anti-modernista. Como é óbvio, simplismo não produz pertinência analítica.
O facto é que, num passado não tão distante, por força principalmente dos adornos da sua matriz originária, a noção de desenvolvimento era associada sobretudo à ideia de desenvolvimento económico, que, prometia-se, haveria de produzir bonança material para então garantir estabilidade e comodidade para todos. Nisso havia a atribuição de uma determinada - e apenas determinada mesmo - dimensão qualitativa à expressão. Mas, como sabemos, o campo semântico é um terreno onde interesses e perspectivas buscam dispositivos para se (a)firmarem. E, assim, a noção de desenvolvimento económico foi deslocada (em alguns sítios mais, em outros menos, é verdade), sendo substituída pela ideia de crescimento. Crescer economicamente não significa distribuir os resultados daí decorrentes. Por outro lado, é certo que a própria expressão desenvolvimento comporta ambiguidades de natureza etimológica ? não por acaso o economista indiano Amartya Sen pôs em realce a tese do ?desenvolvimento envolvendo todas as esferas da vida?.
Seja como for, nos últimos tempos, vem-se procurando impulsionar o aspecto qualitativo da noção de desenvolvimento. Nesse sentido, a ONU o tem reformulado, no rastro da tese de Sen, como desenvolvimento humano. E por aqui estão as arraiais da ideia de  Desenvolvimento Local. Ele viria a ser, portanto, em contextos circunscritos, uma perspectiva voltada para a satisfação de um conjunto de requisitos de bem-estar e de qualidade de vida, pondo o foco num ?consensual interesse colectivo comunitário?.
Essa definição do Desenvolvimento Local, por certo, gera ?animadoras expectativas?. Mas há o outro lado da moeda. E um olhar atento sobre ele, recomenda, no mínimo, cautela. A necessidade de acautelamento decorre do facto de a referida compreensão sobre o Desenvolvimento Local encontrar-se pejada de dilemas que, do ponto de vista da análise social, não têm sido enfrentados, seja por não serem identificados, seja por, quando o são, não receberem a atenção devida.
Não há espaço num artigo como este para abordar adequadamente tais dilemas. De resto, lembrando o que o sociólogo brasileiro Francisco de Oliveira já destacou, limito-me a pôr duas notas em relevo. A primeira diz respeito, seguindo a trilha do conceito de subdesenvolvimento, à sua especificidade histórica, ou seja, o não-desenvolvimento local é um subdesenvolvimento em sentido forte de que ele é peculiar à periferia (ou, se se quiser, à semi-periferia) do sistema mundial capitalista. As consequências teóricas e práticas aqui são evidentes, por exemplo: a) O Desenvolvimento Local não será o elo numa cadeia de desenvolvimento total; b) ou ele é concebido como alternativa ou reproduzirá a forma estrutural.
A segunda nota concerne à cidadania. Esta não é passível de ser mensurada, a não ser por procedimentos tautológicos, que consistem em atribuir pontos àquilo que se quer medir. Isto, contudo, não é defeito do conceito, pelo contrário, constitui a sua fecundidade, visto que a cidadania, dir-se-ia em linguagem deliberadamente arcaizante, é também um ?estado de espírito?. Ela é irredutível à quantificação. Mesmo que o bem-estar e uma alta qualidade de vida devam ser direito dos cidadãos, aqueles não são necessariamente sinónimos de cidadania. De outra parte, qualquer assimilação do tipo citado, também inverte os sentidos da política, dado que é através desta que os cidadãos lutam pelo bem-estar e pela qualidade de vida, e não o inverso.
Quer dizer, a noção de Desenvolvimento Local ou  funda-se na cidadania, entendida como acto de construção da própria cidade - e como acção impossível de ser mensurada -, ou então será apenas sinónimo de uma certa acumulação de bem-estar em contextos localizados, restritos, povoados por indivíduos-massa, que, tomados pelo conformismo, tornam-se  avessos à participação cívica e, por consequência, não debatem os destinos do país,  passando este a ter governos pouco representativos, em decorrência, por exemplo, dos elevados índices de abstenção eleitoral. A ser assim, o Desenvolvimento Local, no máximo, gerará comunidades bucólico-harmoniosas, que buscam o idêntico e, desconsiderando as contradições inerentes à sociedade, fecham-se para o complexo e o conflito.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

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