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Jovens e idosos nas políticas culturais da identidade (II)

Na edição de Agosto/Setembro de A PÁGINA publicamos a primeira parte do artigo intitulado Jovens e idosos nas políticas culturais da identidade, abordando a forma problemática e discriminatória como são tratadas certas culturas jovens que não seguem os padrões burgueses dominantes. Neste número, apresentamos a segunda parte, desta vez focalizando as maneiras perversas como as políticas de identidade se articulam em relação às pessoas idosas.

Mas se as culturas juvenis que escapam aos padrões midiáticos são territórios de dramática habitabilidade, não menos perversas são as formas como as sociedades contemporâneas lidam com as pessoas idosas. Se por um lado certa parcela da juventude precisa ser controlada, refreada, por outro, a velhice, segundo discursos da atualidade, estaria a exigir estímulo e incentivo em direção a uma vida mais ?ativa?, ?saudável?, ?produtiva?. As cenas de avós passeando com os netos, lendo, papeando ou, simplesmente, jogando tempo e conversa fora são cada vez mais incomuns, sendo substituídas por uma ruidosa campanha identitária que investe na invenção de uma nova imagem em que os idosos são reposicionados e descritos como desejosos e necessitados de atividade, espaço, agilidade e movimentação. Se passearmos nossos olhos por jornais, revistas, anúncios, ou se prestarmos a atenção na sempre crescente oferta de cursos e atividades para pessoas da assim chamada terceira idade, seremos surpreendidos por imagens apresentando um enorme repertório de atividades frenéticas em que vemos idosos dançando, cantando, praticando exercícios e esportes, subindo montanhas, saltando de pára-quedas, nadando, percorrendo trilhas, competindo em variadas modalidades, ou mesmo viajando, comprando, apostando, divertindo-se. Deste conjunto poderíamos inequívocamente extrair um enunciado de ordem que diz: ?mexa-se!?, numa evidente interpelação cultural que vai constituindo a identidade das pessoas idosas ditas ?normais?, adequadas para viverem neste início do terceiro milênio. Esse grupo geracional vai sendo subjetivado por discursos que conclamam os idosos a comportarem-se desta nova forma, adquirindo as performances que os reinscrevem na cultura de seu tempo, mergulhando-os num frenesi existencial. Ao mesmo tempo em que são incitados à atividade intensa e à reinvenção de sua identidade, são também reposicionados estratégicamente no circuito do mercado de consumo capitalista. Pacatos cidadãos e cidadãs são reabilitados nas estatísticas mercadológicas. Eles e elas invadem as academias de ginástica, adquirem indumentárias e artefatos esportivos, aumentam a oferta de roteiros turísticos diferenciados, lotam aviões e ônibus para destinos usuais ou insólitos, fazem surgir frotas especializadas de transporte, ocupam vagas em cursos, adotam dietas específicas e intensificam o consumo de alimentos especiais, bebidas, vitaminas e roupas da moda. E não se pense que toda esta movimentação diz respeito apenas às camadas de poder aquisitivo elevado. Em todas estas ordens de objetos de consumo, sempre há uma versão classe média e até mesmo classe média baixa.
Um dos problemas relacionado ao que acabei de relatar talvez seja a instalação de um alto grau de ansiedade entre os componentes desse grupo, gerada pela necessidade culturalmente criada de comportar-se de acordo com estes indicativos de uma velhice normal e desejável - agora também denominada ?a melhor idade?. E não só os idosos são interpelados a corresponder a este padrão, também crianças e jovens aspiram ter pais e avós desse tipo.
É bom esclarecer que, nem de longe, os comentários que faço pretendem expressar minha oposição ao fato de pessoas idosas procurarem ter uma vida ativa, saudável e interessante, assim como, relativamente à discussão sobre a juventude apresentada no número de agosto/setembro, também não desejaria ter sugerido que as culturas juvenis contemporâneas são compostas por criaturas angelicais, isentas de qualquer responsabilidade em episódios de violência ou desregramento que possam protagonizar.
De fato, minha intenção é mostrar algumas das formas como operam as políticas culturais de identidade, atreladas aos discursos e textos culturais produzidos e postos em circulação nas sociedades em que vivemos hoje. Gostaria, igualmente, de ter apontado processos de subjetivação que efetuam aquilo a que Nikolas Rose (1998) se refere como a ?administração do eu contemporâneo?(p.31) ou ?o governo da alma?. Algo acionado no interior da cultura para gerenciar a diversidade de forma a torná-la controlável e apta para alimentar os fluxos desejados do consumo.
Também pretendo mostrar a cultura operando estratégias de inclusão e exclusão inteiramente dissociadas de uma ordem valorativa universal. Quero dizer com isso que inclusão ou exclusão não são processos bons ou maus em si mesmos, encaixáveis invariavelmente numa polarização hierárquica de validade indiscutível e perene. Se uma política de inclusão é boa ou má, é algo que depende de verificação histórica, da avaliação dos efeitos que produziu, da repercussão que teve na vida das pessoas, sociedades ou grupos.
Além disso, também é evidente que se nos aprofundarmos na análise e discussão dos investimentos discursivos sobre as ditas subculturas juvenis, perceberemos que há conexões inequívocas com questões relativas a raça, a classe social, a gênero, entre outras que poderiam ser identificadas. Da mesma forma, se poderia dizer que a identidade idosa que comentei refere-se apenas a uma das muitas formas como as pessoas dessa geração vêm sendo representadas. Tomei como foco um dos discursos circulantes, talvez aquele que vem sendo fortemente disseminado como, neste caso, a identidade da ?velhice padrão da América?. Há, contudo, textos culturais que têm nos colocado frente à frente com outras imagens de idosos, como, por exemplo, as daqueles que habitam os territórios culturais da pobreza material e simbólica, os ?outros?, desassistidos, tristes, abandonados e doentes. Não poucas vezes, as estratégias discursivas acionadas na construção destas identidades, atribuem a elas alguns déficits como falta de instrução, desorganização ou dispersão familiar, etc., numa cruel tática de culpabilização da vítima. Contudo, constitui medida com acentuado caráter pedagógico, dirigida à coordenação das condutas sociais destas pessoas com vistas a uma correspondência ou encaixe adequado aos desígnios das sociedades capitalistas neoliberais. Nelas, o sucesso ou o fracasso são vistos como resultantes do esforço individual, ou da falta deste, isentando-se de culpa a conjuntura social, política e econômica.
Como vem argumentando Stuart Hall (1998), nos cenários pós-modernos, as identidades não são unas e homogêneas; elas são fragmentadas, múltiplas, plurifacetadas e descentradas, inteiramente produzidas nas arenas culturais onde têm lugar as lutas pelo significado. É o significado que dá sentido às experiências e àquilo que as pessoas ou grupos são e, segundo Kathryn Woodward (2000, p.18), todas as práticas que produzem significados envolvem relações de poder, inclusive o poder para definir quem é incluído e quem é excluído.

Referências

HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Trad. Tomaz Silva e Guacira Louro. 2 ed. Rio de Janeiro: DP&A Ed., 1998.
ROSE, Nikolas. Governando a alma: a formação do eu privado. In: SILVA, Tomaz T. (Org.) Liberdades Reguladas. Petrópolis: Vozes, 1998.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz T. (Org.) Identidade e diferença ? a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil
Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil

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