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Novo atentado contra Camões

Na triste crónica dos crimes culturais portugueses já constava a mutilação que durante a Ditadura foi perpetrada, nos livros escolares, suprimindo o episódio da Ilha de Vénus, no Canto IX de "Os Lusíadas". Um escandaloso atentado contra a maior obra literária nacional, em pleno século XX, por motivos que só ao Diabo ou aos sicofantas e turiferários do Ditador ocorreriam, pois que até o devoto censor da primeira edição, em 1572, Frei Bertholameu Ferreira, mandado pela Santa e Geral Inquisição, não achou nos dez Cantos "cousa alguma escandalosa, nem contrária à Fé e bons costumes", considerando que "como isto é Poesia e fingimento, o autor como Poeta não pretende mais do que ornar o estilo poético (...)" António José Saraiva diria algo semelhante, quatro séculos depois: "O mundo mitológico de Camões tem uma única lei: a beleza."
Lê-se agora nos jornais que em manuais escolares destinados aos estudantes do 9º ano (que corresponderia ao antigo Curso Geral dos Liceus) não só foi fracturado  o episódio edénico da passagem dos soldados-marinheiros de Vasco da Gama, no regresso da Índia, pela também denominada Ilha dos Amores, como se truncou ainda o episódio do Velho do Restelo, no Canto IV.
Ora todo o professor de Português tem a obrigação de saber, para explicar minimamente aos seus alunos do 9º ano, que os episódios mutilados constituem justamente as marcas superiores da cultura clássica do Poeta já inserida na corrente mais avançada da  Renascença. Com efeito, se a Ilha de Vénus é como que uma "lusitanização" da homérica Ilha dos Feácios, em que as deusas do Amor   presentearam os heróis-navegadores portugueses com o prazer de dadivosas ninfas que já estavam mais próximas dos modelos "carnais" de Giorgione e de Botticelli do que das idílicas criaturas de Platão, a fala do Velho do Restelo é a voz  humanista do Pensamento renascentista que começa a questionar os paradigmas estéticos e morais medievais. E - ironias da história! - essa fala, premonitória,  é igual à que os portugueses, regressados definitivamente à Europa, cinco séculos passados e depois  de terem perdido "a boa capa e o mau capelo" de que falava ao Infante o seu irmão Pedro (presságio  que Camões  recupera), voltariam a ouvir nos cais de Lisboa - "as mulheres com choro piedoso, os homens com suspiros que arrancavam" - à partida dos soldados para a última guerra colonial.
Alegará um qualquer Ministro da "vaga liberal", só titularmente responsável pela Educação e Cultura dos  portugueses,  que o Estado não deve interferir na elaboração dos livros escolares, confiando à "sociedade civil" a liberdade das opções temáticas. Vê-se: menos Estado, menos responsabilidades...
Entenda-se: sociedade civil são os cidadãos cultos e os incultos, são os professores que só conhecem de Camões e de "Os Lusíadas" o que (não) aprenderam no liceu, são os "especialistas" como estes dos famigerados manuais, que  parece não terem lido sequer  as "lições" sobre a matéria defendidas, por exemplo, por mestres reputados  como António José Saraiva, Jorge de Sena e Hernâni Cidade, como seria sua obrigação, ou, se leram, delas não tiraram proveito que bastasse.             A fazerem carreira tais manuais, isso significará que soma e segue o magistério da deseducação literária, pela mão censória  e displicente de uns tantos agentes do ensino que já em 1991 levaram Miguel Torga a lamentar que "a apetência literária morre na escola", mas esperando que os estudantes, de motu próprio e contra a corrente, "descubram que o escritor não é dentro da pátria um inimigo público embuçado".
Ainda Torga, nesse mês de Fevereiro de 1991, não podia assistir ao escândalo nacional de um governante membro do pelouro da Cultura (liberal) mandar para o Index o romance de José Saramago, "O Evangelho segundo Jesus Cristo", publicado alguns meses mais tarde. Por qualquer motivo que nos escapa, Torga não registou esse atentado contra a liberdade de pensamento no seu último "Diário".  Mas fez outro registo, em Setembro do mesmo ano, que enquadraria aquela arremetida obscurantista: "Não queria outra pátria. Mas vivo envergonhado de ser nesta contemporâneo de alguns dos mais notórios compatriotas (...)"


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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