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A Educação Popular em Paulo Freire

Uma pessoa que me recebeu, sem preconcebimento de credo ou paixão facciosa ? foi a imediata impressão que guardei de Paulo Freire, na primeira vez que o encontrei, em Junho de 1987, em plena Avenida Paulista, acompanhava eu o Lino Castellani Filho, hoje secretário de Estado do Governo do presidente Lula. Dentro de um mês, Paulo Freire e eu seríamos os arguentes das provas de mestrado, precisamente do Lino Castellani, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ?É o Manuel Sérgio de que já lhe falei?, assim fui apresentado ao insigne pedagogo. Um permanente fio de sorriso fraterno vivia na expressão tranquila de Paulo Freire. ?É você que é professor visitante, na Unicamp??. Respondi-lhe que sim: ?na graduação da Educação Física e nos doutorados da Faculdade de Educação?. Começámos ali uma conversa que só findaria, no Hotel Hilton, no centro de São Paulo, onde abancámos a uma mesa, frente a frente, saboreando um café e continuando o cavaqueio iniciado, há bem uma hora atrás. Não me é fácil, hoje, fazer a síntese do que escutei a Paulo Freire, rodados que são tantos anos. Recordo que expunha com justeza de palavra que um certo ardor animava e coloria. Mas deixo aí o que fixei, fundamentado num esboço de artigo, já principiado e ainda não concluído (e que, agora, já o não será), sobre Paulo Freire.
Nasceu ele, no Recife (na ?Veneza brasileira?, como os pernambucanos qualificam a sua capital), em 1921, filho de uma família da média burguesia, o que lhe permitiu concluir a licenciatura em Direito e abrir escritório de advogado, na sua terra natal. Só que, passados meia dúzia de anos de advocacia, bem sucedida, concluiu que, numa população em que dois terços eram analfabetos e sobreviviam em extrema miséria, ele era um dos advogados das classes possidentes, dos coronéis latifundiários, já que os pobres não tinham dinheiro para poder consultá-lo. Demais, o Direito que estudava e profissionalmente exercia não passava de um amontoado de leis, ao serviço de uma sociedade injusta. Inteiriçando o tronco e riscando na testa a ruga vertical dos momentos enérgicos, acrescentou: ?E tomei uma decisão inabalável. Voltei à universidade para estudar filosofia e pedagogia, ao mesmo tempo que, convictamente, decidi dedicar a vida, em favor dos marginalizados do meu País?.
Agitado pelo borbotar das suas ideias inovadoras e francas, logo foi encarado, pela alta roda, com ódios de raiz. E, por isso, perseguido e forçado ao exílio. Passo por cima deste período amargo da sua existência, aliás compensado pelo reconhecimento paulatino, em todo o mundo, do rigor e actualidade das suas propostas ? propostas que radicam aqui: há uma nítida relação dialéctica, entre o analfabetismo e a fome! Na América Latina, há fome porque grassa o analfabetismo, há analfabetismo porque a fome, por absoluto desprezo da justiça social, não permite que não se aprofunde o fosso que separa os cultos (quase sempre filhos da minoria dominante) e os ignorantes (quase sempre filhos da maioria dominada). E avivou um pensamento que eu já sabia ser seu: ?Não existem marginais, mas apenas marginalizados económica, social, culturalmente?.
Assim, a educação, também ela, não é instrumento de libertação. Os modelos de domínio não se circunscrevem à dimensão económica, pois têm a ver com a sociedade toda. E a educação é de importância fundamental para promover certos valores; para generalizar a convicção de que o capitalismo é o fim da História; para legitimar uma determinada ordem social, decorrente da hegeliana ?realização do espírito universal?, que é eurocêntrico e excludente. Para tanto, importa manter e reforçar uma ?educação bancária?, em que o aluno funcione tão-só como ?contentor?, ou seja, como receptor passivo de conceitos que lhe são adversos, porque servem para fundamentar um conhecimento imperial e colonial do mundo. Em Paulo Freire, a sua vontade parecia tão tenaz, como sereno o curso das suas ideias: ?Na educação bancária, o aluno é o banco onde o mestre deposita o seu saber que vai render largos juros, em favor da ordem social que o professor representa. Esta educação é um dos aspectos, e fundamental, da sociedade?. Mas levantou a mão em gesto cortante e vincou o aspeito, quando disse: ?Há que erradicá-la da face da terra, o mais rápido possível. Nesta educação vertical, hierárquica, autoritária, tudo se processa para imposição de um saber, pois que o professor sabe tudo e o aluno nada sabe e assim aceite, sem pestanejar, as normas que o Poder impõe. Procura-se, deste modo, desacreditar, extinguir, nos jovens, o espírito crítico, de liberdade e de responsabilidade e até a consciência da cultura e da identidade nacionais?.
Suspendeu-se e, em seguida, espalhando o olhar, em leque, pelo Lino e por mim, meditou e confirmou:? Esta é uma educação que forma ignorantes, em que a relação é de sujeito (o professor) a objecto (o aluno) e desligado do social e do político?. E qual é a alternativa à ?educação bancária?, também eurocêntrica e portanto colonizadora? ? A alternativa (afirmou ele, num discurso de claridade crua como o sol a pino daquele dia) está na educação problematizadora, que não se resume à acumulação de conhecimentos, mas à conscientização do que nos exige a nossa situação social e política. Conscientizar significa, acima do mais, não só ensinar a ir ao cerne de um debate, avaliando a segurança e a coerência das opiniões, mas também promover, no aluno, o senso crítico, que lhe permita buscar, no discurso explícito da ideologia dominante, as suas posições implícitas; que se auxilie o educando a perceber que não se pode confundir a História da América Latina com a História da Europa, nem ver na Europa a salvação da América Latina. O Brasil não deve aceitar programas pré-fabricados, provenientes de países europeus ou norte-americanos, mas procurar respostas para os seus problemas, criando a massa crítica que permita, através da reflexão independente, as soluções adequadas. Homem culto é o que problematiza, o que transforma em novas perguntas os seus problemas?. Neste passo, eu relembrei uma frase de Alceu Amoroso Lima, que o meu querido amigo (e filósofo brasileiro) Regis de Morais repete, com alguma frequência: ?é preciso elitizar as massas e massificar as elites?. E Paulo Freire, revertendo às suas amadurecidas cogitações: ? De facto, é preciso acabar com a sociedade de classes que, propositadamente, enreda e sufoca os alunos com um teoricismo frio, vazio, indiferente ao sofrimento do povo desprezado?.
Nesta perspectiva, professores e alunos surgem como colegas, teorizando e praticando um trabalho comum, que é afinal uma troca de experiências, vividas simultaneamente por todos eles. Assim, o professor obriga-se a fazer seus os problemas dos alunos, a não iludi-los, para que sobrenadem as contradições ocultas e neles aconteça, naturalmente, a ?conscientização? e seja verdade a ?educação problematizadora?. E até a levantar perguntas que dão que pensar, mesmo a quem espirre jovialidade: por que é tão pronunciada a desigualdade social, em tempos de tão publicitada igualdade política?

A educação não fundamentada no diálogo assemelhar-se-á a uma sessão de propaganda

E, se há troca de experiências, se não há o silêncio obediente dos alunos e o monólogo dos professores, há naturalmente diálogo. É a submissão dos alunos que alimenta a prepotência e o colonialismo cultural dos professores. A palavra, para Paulo Freire, deve integrar dois elementos: a reflexão e a acção, dialecticamente relacionados. Que o mesmo é dizer:  a palavra é práxis, quando encorpora em si uma reflexão de transformação do mundo. Nisto se distingue a palavra do verbalismo ôco (do aranzel, da lengalenga) do qual não pode divisar-se a acção. Se a característica fundamental da existência humana é a transcendência, esta deve também realizar-se, através da superação do silêncio, donde desponta a palavra apta à revolução, ou seja, capaz de encarnar nos agentes sociais. A própria crítica epistemológica, disse-o Pierre Bourdieu, no seu livro, Leçon sur la leçon, que eu então lia, ?não se concebe sem uma crítica social?. A práxis não pode limitar-se a uma actividade da consciência, como também não pode quedar-se na boca de meia dúzia de pessoas, por mais aliciante que seja a sua simpatia. A propósito, poderia escutar-se Karl Marx, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: ?Sem dúvida, a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, o poder material tem que ser abatido através de um poder material; simplesmente, também a teoria se transforma em poder material, quando se apodera das massas?. Neste ínterim, Paulo Freire pareceu-me um filósofo de forte influência marxista, porque também nele o possível é o possível de uma determinada palavra que se faz prática transformadora, através de todos os agentes sociais. O papel orientador da reflexão tem de chegar a todos e não só a alguns e também pelo diálogo. Recordo os olhos de Paulo Freire, espertados pela percepção viva, ao definir diálogo: ?é o encontro entre homens, proporcionado pelo mundo, para dar um nome ao mundo?. E continuou: ?O diálogo é impraticável num grupo em que nem todos queiram dar um nome ao mundo; entre os que roubam aos outros a palavra dos seus sentimentos e legítimas aspirações e os que se sabem espoliados desse seu direito fundamental; entre os que fazem dos problemas de justiça social uma conversa de café e os que os sentem como problema político; entre os que, na escola, entendem a palavra como monopólio e os que a descobrem como instrumento de opressão. Portanto, o diálogo é impensável entre um professor  que se considera elemento de um grupo, possuidor da Verdade, e os alunos que, manipulados, não descobrem em si mesmos uma ponta sequer de saber?. Por consequência, a educação não fundamentada no diálogo assemelhar-se-á a uma sessão de propaganda, assiste-se ao primado da Vontade do Príncipe e ao propalado adágio popular: Com o teu amo não jogues as pêras! Agostinho da Silva aconselhava (em Sete Cartas a um Jovem Filósofo, p.66): ?Quando um modelo de vida lhe parecer bom, siga-o mas, por favor, não queira que os outros o sigam; o pregador é intolerável (quero eu dizer: muito difícil de suportar)?. Pelo diálogo, a verdade surge consensual, na conjugação de referências diferentes e no reconhecimento de que todos somos parceiros, na sua busca e na sua realização.
Se a função da palavra autêntica é eminentemente práxis, pois que é reflexão e acção, o povo sul-americano não pode esperar a palavra necessária de quem diz o que não pensa, de quem não cumpre o que promete, de quem o teme porque o oprime e o oprime porque o teme. A palavra tem, para Paulo Freire, uma função social objectiva, desde que mediada pelo povo. Pensar sobre o povo, ou para o povo, é construir um corpo sem alma, é afinal uma das muitas mentiras que sustentam o mito da ignorância radical do povo, visando a continuidade da sua exploração. É preciso pensar com o povo, aprender com ele, para que se materialize a dialéctica reflexão-acção. E  Paulo Freire, mudando de inflexão, tornando a voz familiar e dando-me uma palmada amiga no braço, acrescentou: ?Uma transformação pedagógica e social será sempre fruto de uma acção conjunta de professores e alunos. Uma acção cultural, ou se baseia no diálogo, ou é mais uma forma de opressão. E, como não há diálogo, em sistemas ditatoriais ou nalgumas sociedades ditas livres, não há iguais direitos, por mais que se diga o contrário, à educação e à cultura. O mito de que as elites, que olham os pobres de alto a baixo, em interrogações secas e distantes, se encontram empenhadas no bem-estar do povo e dele merecem uma rendida gratidão, não passa de mais um meio para manter um sistema social e político. O progresso divisa-se no diálogo, entre as várias classes...  enquanto houver classes. De qualquer forma, para já, uma autêntica educação popular pode levar-nos a tempos novos?.  Paulo Freire olhou furtivamente o relógio e achou o momento oportuno de fazer uma referência às horas: ?Tenho de me ir embora!?. Eu murmurei: ?Como o tempo passou  tão rápido!?. E o Lino, contemplando-o, com emoção mal velada: ?É sempre assim, quando escutamos o mestre!?. A rua estava lavada de sol e Paulo Freire desapareceu, por entre os transeuntes que passavam lestos, talvez correndo atrás de fugidias quimeras. Voltei a encontrar-me com ele, nas provas de mestrado do Lino Castellani Filho. Retomámos uma conversa idêntica à que já encetáramos, um mês antes. Ficámos de nos voltar a ver, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde Paulo Freire iria, dentro em breve, e eu poderia acumular mais algum saber e algumas horas mais de alegria, através do convívio com o eminente pedagogo. Afinal, foi o Moacir Gadotti, um discípulo querido de Paulo Freire, universitário de qualidade e arguto entendimento, que tive o prazer de reencontrar: ?O Paulo não vem. Venho eu, no seu lugar?. E, temendo um súbito desânimo da minha parte, confortou: ?Mas ele vem à Unicamp, dentro de pouco tempo?. O Rubem Alves, em cujo gabinete de trabalho nos encontrávamos, pediu ainda informe pormenorizado sobre Paulo Freire. Era um simples resfriado. A verdade é que não mais voltei a encontrá-lo. Mas continua, dentro de mim, quente e poderoso, o sol da esperança, que brilhava em Paulo Freire ? a esperança de uma sociedade de partilhada solidariedade! Nem sei bem porquê ocorre-me a frase que li, em Bergson: ?Quanto mais envelheço, mais acredito na eternidade. Porque, quanto mais velho estou, mais me sinto pronto para viver?.


  
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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