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A literacia face a uma nova ecologia cognitiva?

A influência do impresso é ainda tão forte que a maioria das metáforas usadas para descrever o novo suporte usam terminologia e imagem advindas deste momento tecnológico anterior. Semelhante ao que aconteceu com relação à imprensa, são as novas gerações que conseguirão fazer um uso prático da tecnologia de modo verdadeiramente original?

Com a ascensão da escrita, o saber pôde destacar-se parcialmente das identidades pessoais ou colectivas, tornar-se mais ?crítico?, ter por alvo uma certa objectividade e um alcance teórico ?universal?. Não são somente os modos de conhecimento que dependem dos suportes de informação e das técnicas comunicativas. São também, por intermédio das ?ecologias cognitivas? que elas pressupõem, os valores e os critérios de julgamento das sociedades.
A influência do impresso é ainda tão forte que a maioria das metáforas usadas para descrever o novo suporte usam terminologia e imagem advindas deste momento tecnológico anterior. Semelhante ao que aconteceu com relação à imprensa, são as novas gerações que conseguirão fazer um uso prático da tecnologia de modo verdadeiramente original, resolvendo também as dificuldades legais e financeiras que são ainda arrastadas do modelo impresso.
A tecnologia digital rompe com a narrativa contínua e seqüencial das imagens e textos escritos e se apresenta como um fenômeno descontínuo. Sua temporalidade e espacialidade, expresso em imagens e textos nas telas, estão directamente relacionadas ao momento de sua apresentação. Verticais, descontínuas, móveis e imediatas, as imagens e textos digitalizados a partir da conversão das informações em bytes, têm o seu próprio tempo, seu próprio espaço; o tempo e o espaço fenoménico da exposição. Elas representam portanto um outro tempo, um outro momento, revolucionário, na maneira humana de pensar e de compreender.
Face a a essas novas tecnologias, como se configura o processo de literacia? A escola preocupada em formar cidadãos que estabeleçam uma relação mais crítica com o conhecimento e com sua realidade social, precisa apropriar-se dessas tecnologias, mas não apenas como material lúdico, neutro e nem fazendo uma crítica externa a elas como se fossem naturalmente alienantes. Pelo contrário, deve construir um diálogo com as diferentes representações por elas veiculadas, sem buscar designar a priori o locus das verdades e o das mentiras, mas ajudando os alunos a inter-relacionarem criticamente as várias e contraditórias representações que circulam diferentemente inter e intra distintos espaços culturais e, a partir daí, conhecer os múltiplos e contraditórios projectos e práticas sociais que elas legitimam, definem ou questionam para, finalmente, se posicionarem consciente e autonomamente em relação a elas. Ou seja, as tecnologias eletrónicas devem ser tratadas como construções históricas que participam da constituição do mundo social, às vezes reforçando o status quo, às vezes incentivando o seu questionamento. Isso possibilita que o ensino das várias disciplinas, além de contribuir para a formação de telespectadores que não absorvem os conteúdos dos programas televisivos como verdades inquestionáveis, discuta, com o auxílio desses programas, as complexidades, contradições das sociedades e do presente, a multiplicidade de representações de mundo social nele existentes.
A relação entre literacia e a televisão, por exemplo, só é possível naquelas experiências didácticas apoiadas em metodologias de ensino que procuram romper o ?monopólio da fala? do livro didáctico e do professor, incentivando o gosto pela discussão de diferentes pontos de vista, a reflexão dos alunos, a possibilidade de apropriação crítica dos conhecimentos históricos. Uma literacia que não considere o aluno como uma tábula rasa e que, ao estudar um determinado tema, confronte múltiplas representações existentes sobre ele: as que os alunos conhecem fora do espaço escolar através da televisão e outros lugares sociais e outras ainda desconhecidas. Nesse confronto, não se deve procurar definir quais representações são verdadeiras, quais são falsas, ilusórias. Deve-se, sim, descobrir suas diferenças ao representar o real, analisar a que grupos sociais, identidades culturais estão ligadas, quais projectos procuram legitimar.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 138
Ano 13, Outubro 2004

Autoria:

José de Sousa Miguel Lopes
Univ. do Leste de Minas Gerais, Brasil
José de Sousa Miguel Lopes
Univ. do Leste de Minas Gerais, Brasil

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