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"Continua difícil educar você, Alice!"

Passeávamos pela calçada em uma de nossas caminhadas.
 Passou uma moto e Alice manifestou sua admiração.
 Deu-se o seguinte diálogo:
? Mamy, você me dá uma moto?
? Moto é muito perigoso, Alice. Que tal, quando você fizer 18 anos, pedir um carro para o Papy?
? Quando eu fizer 18 anos, eu alugo um apartamento ecompro a minha moto.

Escrever sobre as dificuldades em educar Alice é um processo tão complicado quanto viver essas dificuldades. Alice, aos cinco anos, tem suas regras próprias e não se sujeita às regras que eu, mãe, tento impor. Afinal, pensava eu que me cabia esse papel de ditar as normas. Engano.
Minha mãe foi muito rigorosa comigo e me ensinou a obedecer. Cresci respeitando os mais velhos! Fui trabalhar em uma escola de padres, onde a disciplina era o "cartão de visitas". Assumi logo a função de coordenadora, provavelmente, porque meu perfil se adequava muito bem ao sistema de controle dos alunos e professores. Hierarquia era fundamental princípio regulador das relações humanas para mim. Então nasceu Alice.
Copio de meu "diário de mãe" a frase que dou título a esse texto, escrita quando Alice tinha apenas 3 anos. Passei a (re)aprender o que é autoridade em um outro tipo de relação, a possível com Alice. Ela me ensina que democracia se aprende/ensina a cada dia.  Como nos diz Inês Barbosa de Oliveira (1999, p.11), «A democracia não é apenas um sistema político ou uma forma de organização do Estado. Uma sociedade democrática não é, portanto, aquela na qual os governantes são eleitos pelo voto. A democracia pressupõe uma possibilidade de participação do conjunto dos membros da sociedade em todos os processos decisórios que dizem respeito à sua vida cotidiana, sejam eles vinculados ao poder do Estado ou a processos interativos cotidianos, ou seja, em casa, na escola, no bairro, etc.»
Esta concepção atualiza o que me dizia minha avó: "democracia começa no berço". Entretanto, não quero deixar a impressão de que é tão fácil. Um dia, nasce uma menininha que não se sujeita às regras que sua mãe estabelece e sua mãe passa a ser outra mãe, menos "mandona". Não! Abrir mão de meu mandato é uma aprendizagem difícil, onde Alice e eu vivemos embates diários de não aceitação uma da outra, não compreensão e raiva. Sim, a raiva também perpassa nossa relação de incompreensão mútua, nos momentos mais banais de nossa vida cotidiana.
[Estávamos na hora da sobremesa do almoço de domingo: gelatina com creme de leite. Alice quis se servir sozinha de creme. Pedi que colocasse devagar, mas antes mesmo de terminar de falar, ela apertou a caixinha do creme com tamanha força que "voou" creme para todo lado. Então, sem deixar de mostrar minha irritação, falei que, da próxima vez, não a deixaria colocar o creme de leite sozinha. Ela, então, rápida como sempre em suas respostas, disse "Não vou querer creme de leite da próxima vez. Aliás, só vou querer creme de leite depois que você morrer".]
Parece(?) uma corriqueira descrição de uma mal-criação infantil. Será que descrevendo essas situações, não consigo demonstrar a gravidade? Ou será que me faz compreender o quanto não são graves esses momentos que tanto me magoam e me fazem sofrer? Mas, a dimensão do que me fazem pensar está para muito além do que se passa. Há toda uma gama de valores e crenças que se desmorona. Para abrir mão da gravidade dos fatos, preciso abrir mão de minha autoridade(?) de mãe. "Não se fala assim com uma mãe!" " Não se responde aos mais velhos!" "Não se enfrenta uma mãe com esse olhar desafiador." "É preciso acatar o que a mãe fala." Mas, Alice não aprende isso! Ela me desafia a aprender a ser mãe. Mas, não uma mãe pronta, modelada pelas regras de uma educação repressora. Ela me ensina a aprender que, em cada momento, precisamos pensar na relação, nas normas, nas decisões. Com muito amor! E Maturana (1998, p.66) me ajuda a refletir que esse amor "constitui o espaço de condutas que aceitam o outro como legítimo outro". E partilhamos juntas essa aprendizagem, pois não há de se acabar com todo o respeito e regras de convivência social. Mas preciso compreender mais o que é convivência social. Maturana me alerta, contando um caso entre um general e seu ordenança." ? Meu general, sabe, acho que o que me pediu para fazer ontem não vai dar. ? Você tem que fazer o que eu disse! ? Mas, meu general... _ É uma ordem! Acabou-se a relação social" (Maturana, 1998, p.70). Se não há relação social na hierarquia, preciso rever meus conceitos! Como se estabelecem o respeito e a convivência? "Democratizando as relações de poder transmutando-as progressivamente em relações de autoridade partilhada", vem me alertar Santos (1995). E aí eu penso: "Como é difícil educar você, Silvia!"

Algumas pessoas que ajudam a educar-me:

Maturana, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Currículos praticados: entre a regulação e a emancipação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. (org.) A democracia no cotidiano da Escola. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
Santos, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

Silvia Beatrix Tkotz
Grupo de pesquisa «Redes de saberes em educação e comunicação: questão de cidadania», Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil
Silvia Beatrix Tkotz
Grupo de pesquisa «Redes de saberes em educação e comunicação: questão de cidadania», Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil

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