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Para uma Educação Desportiva

A dinâmica da sociedade industrial desenvolveu-se em função do tempo que as pessoas passavam nos empregos. Por isso, elas foram educadas para um mundo organizado numa lógica do trabalho. De facto, as mais diversas actividades humanas a partir de finais do século dezanove passaram a processar-se de acordo com a lógica do industrialismo e do consequente trabalho organizado. Também no mundo da educação, a disciplina de Educação Física (EF) foi concebida em função das necessidades do mundo do trabalho e das linhas de montagem das fábricas.
Muito embora esta problemática tenha estado, de uma maneira geral, sempre presente nos fóruns de discussão, o que é facto é que a crise da organização do desporto no sistema de ensino, foi uma constante ao longo do século XX. O Decreto 21:106 de 16 de Abril de 1932, que organizou um programa para a educação física (EF) proibiu, pura e simplesmente, o desporto nos estabelecimentos de ensino público. Com a institucionalização da Mocidade Portuguesa em 1936, das diversas estruturas orgânicas para o desporto escolar (DE) a partir de 1974 ou dos programas decorrentes da reforma do Sistema Educativo desencadeadas pela Lei 46/86 de 14 de Outubro, jamais foi conseguido um quadro coerente de acção que ultrapassasse os paradoxos e as contradições que, ainda hoje, caracterizaram a disciplina de EF e o DE. A este respeito, basta ver-se o que foi explanado tanto na referida lei do Sistema Educativo, como na do Sistema Desportivo (Lei 1/90 de 13 de Janeiro), para se confirmar a falta de uma visão e de um rumo claros para um assunto de importância fundamental na educação das crianças e dos jovens do país.
Geralmente, o que tem acontecido é que se identificam deficiências e estrangulamentos, ensaiam respostas de cariz eminentemente didáctico e pedagógico, sem que se avancem com soluções de ordem ideológica claras, para que a partir de bases concretas, as discussões possam ter lugar de forma organizada, única maneira de se conseguir um modelo organizacional expedito que promova a evolução e o progresso. Em consequência, tudo termina com um conjunto de lamúrias mais ou menos corporativas que, se nos dermos ao trabalho, podemos verificar já vêm do 1º Congresso de Educação Física realizado pelo Ginásio Clube Português em Junho de 1916.
Entretanto, os tempos têm vindo a mudar e a sociedade a evoluir pelo que, neste mundo em transição do industrial para o pós-industrial, é necessário começar a ver toda a sociedade também pelo outro lado, quer dizer, pela organização do tempo livre, porque a relação ?tempo de trabalho / tempo livre? cada vez será mais favorável a este último. Em consequência, estamos perante a necessidade de construir uma escola que prepare os alunos para o mundo do trabalho e para a economia do lucro, mas que, também, os ensine para o mundo do lazer e para todo um conjunto de práticas que se organizam, entre outros, no domínio do desporto. Se as novas gerações não forem educadas para saberem aproveitar o seu tempo livre e de lazer duma forma pessoal e socialmente úteis, elas vão encontrar, à sua própria maneira, o modo de o fazerem e, como já hoje se pode constatar, na maioria das vezes, os resultados são catastróficos.
Mas afinal o que é a EF? O Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, define EF como ?a disciplina escolar que tem como objectivo promover o desenvolvimento de capacidades motoras e corporais através da prática desportiva.? Quer dizer, do ponto de vista do senso comum, o desporto tem vindo a assumir-se como a própria substância da disciplina de EF e, em consequência, o seu instrumento pedagógico. Contudo, quando olhamos para a grande maioria dos estabelecimentos de ensino, verificamos que a disciplina de EF por não ter suporte numa dinâmica ideológica e organizacional adequadas, não passa duma mera animação físico-recreativa, de qualidade duvidosa. Para superar esta dificuldade, surge o DE que enquanto actividade extra curricular acaba por não ser alimentado convenientemente a montante pela disciplina de EF, não cumprindo na plenitude a sua missão.
O paradoxo, é que estamos perante duas realidades organizacionais distintas ? a EF e o DE ? que no âmbito do processo educativo, têm objectivos idênticos, utilizam os mesmos meios e dirigem-se aos mesmos destinatários. Se no passado esta situação foi suportável, hoje, não faz qualquer sentido uma duplicação de esforços. Assim, a ruptura com uma EF que por falta de substância até se traveste de desporto é não só necessária como urgente. Até porque, o contribuinte paga a disciplina de EF, paga o DE, e como nenhuma destas estruturas funciona em termos de responder globalmente às necessidades dos jovens e do país, paga o desporto que os jovens vão praticar nos clubes que, por sua vez, em número significativo de situações, recebem subsídios do Estado. Só que os clubes são selectivos em termos de rendimento, por isso, aqueles que não atingem o padrão estipulado têm de se inscrever num clube privado se quiserem continuar a prática desportiva. Como as Federações Desportivas também auferem verbas do erário público para a promoção da prática desportiva para os mesmos grupos etários, podemos dizer que, pelo mesmo serviço social, em muitas circunstâncias de qualidade inferior, o contribuinte paga cinco vezes.
Defendemos que a disciplina de EF assuma na plenitude o desporto como a sua substância pelo que deverá passar a designar-se por Educação Desportiva (ED), tal como a Educação Musical, a Educação Cultural ou Artística e outras, porque, de facto, o objectivo é transmitir aos alunos através de uma leccionação curricular e extra-curricular, uma cultura desportiva que lhes proporcione vantagens no domínio do biológico, do psicológico e do social, que se prolonguem para a vida. Em nossa opinião, trata-se de assumir uma tecnologia ? o desporto ? com objectivos e métodos próprios e não, como parece alguns pretendem, de desenvolver uma actividade física latos senso, com objectivos higienicistas numa perspectiva de educação para a saúde, sob pena dos actuais profissionais de educação física e ou desporto, se transformarem, pura e simplesmente, em profissionais paramédicos.
É necessário promover uma mudança radical, mas faseada num período de tempo com marcos e objectivos perfeitamente estabelecidos. O que propomos é uma ED que, enquadrando numa lógica comum a actual disciplina de EF e o DE, numa dinâmica ideológica e organizacional radicalmente diferente da actual, de facto, se prolongue para a vida para além da escola, no âmbito do desporto formal e do lazer desportivo activo ou não activo. Só assim o Estado deixa de se desmultiplicar em respostas de valor pedagógico e social medíocres, para além de serem economicamente desastrosas.
Tal como no passado, apesar de todos os fóruns de reflexão e confronto de ideias, o que é facto é que se no âmbito da acção política os governos continuarem a utilizar os mesmos procedimentos, não podem esperar obter resultados muito diferentes daqueles que foram obtidos até agora. Por isso, vemos com cepticismo não só a nova lei para a educação recentemente aprovada na Assembleia da República que em matéria de educação desportiva se limita a confirmar as confusões da anterior, como também a anunciada nova lei para o desporto que, na matéria em causa, expressa tão-somente um retrocesso de pelo menos 30 anos em relação à Lei 1/90.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa
Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa

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