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Saramago, o conspirador?

O «Ensaio sobre a Lucidez» vale mais por aquilo que os outros escreveram a seu pretexto do que propriamente por aquilo que esse romance nos possa revelar.

?Passava da meia-noite quando o escrutínio terminou. Os votos válidos não chegavam a vinte e cinco por cento, distribuídos pelo partido da direita, treze por cento, pelo partido do meio, nove por cento, e pelo partido da esquerda, dois e meio por cento. Pouquíssimos os votos nulos, pouquíssimas as abstenções. Todos os outros, mais de setenta por cento da totalidade, estavam em branco?. No «Ensaio sobre a Lucidez» foi isto que aconteceu numa capital imaginária de um país imaginário, onde, nos também eles imaginários ?municípios da província?, a ?eleição havia decorrido sem acidentes nem sobressaltos, salvo um ou outro atraso ligeiro ocasionado pelo mau tempo, e que haviam obtido resultados que não se diferenciavam dos de sempre?.
Como é que uma obra de ficção que foi construída a partir deste episódio nuclear deu origem a tantos artigos, proclamações, notícias e editoriais? Mesmo que tenhamos de conceder o devido desconto àqueles que, sem terem lido uma linha que fosse da obra de Saramago, recorreram à cassete do costume para zurzir em tudo o que lhes cheire a subversão esquerdista, não deixa de ser intrigante que a participação maciça num acto eleitoral por parte da população da capital de um país ficcionado tenha dado origem a um tão amplo movimento de profissão de fé nas virtudes do regime democrático. O que é que o justifica? Abre-se um jornal ou uma revista e lá encontramos nós as frases feitas de sempre. ?Saramago não tem autoridade moral para dar lições de democracia?, escreveu Vasco Rato. ?Depois do estalinismo e do voto em branco, fica-se à espera da próxima tentativa de Saramago para conseguir derrubar a democracia?, ataca Miguel Sousa Tavares. ?O incitamento de José Saramago ao voto em branco não pode considerar-se uma novidade?, afirma o arquitecto José António Saraiva, director do «Expresso».
A obra que, do ponto de vista ficcional, é até um pouco desajeitada e insossa, adquiriu, assim, um impacto que, depois de a lermos, nos deixa bastante perplexos. Neste sentido, o «Ensaio sobre a Lucidez» vale mais por aquilo que os outros escreveram a seu pretexto do que propriamente por aquilo que esse romance nos possa revelar. Assim, de um lado da barricada encontram-se aqueles a quem Juan L. Cebrián baptiza por ?fundamentalistas democráticos?, os quais demonstram não serem capazes de distinguir, como o mesmo Cebrián o faz numa entrevista que concedeu à «Visão», que ?a democracia não é uma solução, mas apenas uma condição para tudo». Do outro lado da barricada estão, por seu turno, todos os que como Boaventura S. Santos consideram que a proposta do voto em branco é, afinal, ?uma profissão de fé na democracia porque só esta permite o voto em branco?. Um voto de resistência ?contra esta democracia que, no entanto, valida, na medida em que a usa para a denunciar», constituindo, deste modo, ?um apelo a que, a partir desta democracia, se construa outra?.
Mas isto é B. S. Santos a falar. Nada na obra de Saramago aponta explicitamente neste sentido. A urdidura do «Ensaio sobre a Lucidez» constrói-se a partir de meia dúzia de personagens em função dos quais se constrói uma espécie de trama policial reveladora de uma conspiração palaciana que tem como pano de fundo o voto em branco dos habitantes de uma cidade. Este não é, assim, um romance através do qual se faça qualquer tipo de apelo ao voto em branco. É um romance sobre o abuso do poder, como regra, no âmbito dos regimes democráticos que, pese a qualidade da prosa do seu autor, acaba por ser, de algum modo, uma obra politicamente ingénua, principalmente quando a comparámos com a realidade que as acções, entre outros, dos Bush e dos Aznar deste mundo têm vindo a ilustrar de forma tão eloquente quanto ignominiosa. 
O «Ensaio sobre a Lucidez» vale assim, e sobretudo, pelo significado da polémica que gerou. Polémica esta que ilustra como a discussão política se continua a fazer sob a égide quer do culto da má-língua, do preconceito e da ignorância quer das operações massivas de intimidação ideológica daqueles que têm os meios e o poder para as realizar. Os mesmos que, afinal, nos pretendem fazer crer que não existe qualquer contradição insolúvel entre a democracia política e a globalização neoliberal, entre os direitos dos cidadãos e a ausência de regras de um mercado que se constrói, de forma cada vez mais visível, contra e apesar desses direitos e desses cidadãos.
Quem é que são, afinal, os conspiradores de serviço? Quem é que descrê da democracia como regime político capaz de promover a dignidade humana como valor primeiro da vida no mundo e nas sociedades contemporâneas?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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