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Um mundo sem o trabalho alienado

A inteligência dos homens tem vindo a permitir liberta-los do trabalho-mercadoria, do trabalho alienado. Uma sociedade cada vez mais centrada no conhecimento, no tempo livre e nas actividades ligadas ao pensamento e à criação, está agora ao nosso alcance. O capitalismo está em final de vida.

Discuta-se, neste Maio de agora, o trabalho. Discuta-se, sobretudo, a possibilidade de criar um outro paradigma para as relações de trabalho, para a consideração que os trabalhadores merecem e, para o papel do trabalho, na sociedade em que vivemos. Uma sociedade que se distancia da que conhecemos nos séculos XIX e XX.
A memória histórica do 1º de Maio, aponta na direcção de lutas que procuram tornar mais amena a vida de homens e mulheres, membros de uma sociedade industrial que coisificou o género humano e o reduziu a seres portadores de força de trabalho.
Nessa sociedade industrial ? em extinção ? os seres humanos foram reduzidos à mais limitada das suas potencialidades, ou seja,  à sua capacidade de trabalhar. E foram amarrados a um paradigma que os impede de se realizarem como verdadeiros seres humanos.
Em Portugal, a política seguida pelo actual governo e a exigida pela maioria do patronato, vai no sentido de reduzir ? se possível ainda mais ? os trabalhadores portugueses a mera força de trabalho, a uma mercadoria que se quer comprar o mais barata possível. É esse o sentido político da actual governação de direita em matéria de trabalho e de direitos dos trabalhadores.
Os trabalhadores, enquanto portadores de força de trabalho, apresentam-se para a sociedade capitalista como uma mercadoria dotada de valor de uso e de valor de troca. Uma mercadoria que tem a especificidade de criar valor e que se vende e se compra no mercado de trabalho. Nesta sociedade de consumo, o trabalhador pouco mais tem conseguido do que fadiga e esgotamento. A consideração do trabalhador como pessoa, como género humano, como sujeito de direitos, como detentor de poder social e político, como fruidor do tempo livre, como cidadão, está longe de se realizar.
O trabalho como mercadoria, como castigo e sofrimento, ocorre na sociedade capitalista, mas não é uma fatalidade. Não é uma condenação divina e eterna. A inteligência do ser humano, de forma cada vez mais acelerada, vem produzindo tecnologias que poupam o trabalho-escravo, permitindo uma libertação do ser humano em relação ao trabalho de produção e reprodução e dando à sociedade, no seu conjunto, uma maior percentagem de tempo a ser canalizada para o ócio, o pensamento e a criação. Dito de outra maneira, o trabalho-mercadoria tende a converter-se numa força de produção secundária face à automação e à complexidade das novas tecnologias e dos novos equipamentos.
Já o presente, mas sobretudo o próximo futuro, mostrar-nos-á uma sociedade onde são cada vez mais escassos os empregos em que o esforço e o rendimento individual conservem sentido. Serão cada vez menos os empregos em que a quantidade e a qualidade dos produtos dependam do esforço físico dos trabalhadores e da aplicação do seu tempo. As transformações ocorridas nos últimos quarenta anos, abriram as portas para uma sociedade liberta do trabalho-escravo e prefiguram uma sociedade com mais conhecimento, aprendizagem, educação e tempo livre.
As transformações no mundo do trabalho foram rápidas e  enormes. Antes da segunda metade do século XX era impossível imaginar que se chegasse a uma sociedade onde 5% da população é responsável pela produção agrícola, o operariado está em vias de extinção e a maior parte dos trabalhadores trabalhem nos serviços.
Nesta nova sociedade, o trabalho assalariado é cada vez mais um bem escasso que importa repartir com justiça. Esta falta de trabalho não é, necessariamente, negativa. Pelo contrário. Ela prefigura uma sociedade onde a produção dos bens necessários à vida saudável da humanidade, implica cada vez menos trabalho e esforço humano. Uma novidade que põe em causa as categorias pelas quais se rege o capitalismo. Dito de outra maneira, é preciso assumir politicamente que o trabalho assalariado tende a deixar de ser a centralidade e o paradigma da sociedade. É preciso compreender que o trabalho mercantil explica, cada vez menos, o papel dos indivíduos na comunidade. E é preciso entender que estas modificações profundas põem em causa a existência do sistema capitalista que tem governado o mundo.
É neste quadro de transformação radical do trabalho e dos meios de produção que é preciso pensar criticamente o capitalismo. Este, face à diminuição das necessidades de trabalho mercantil, vira as costas às necessidades dos cidadãos, aumenta a competitividade e a guerra económica, lança massas de trabalhadores no desemprego e na exclusão, retira direitos e intensifica a exploração sobre os que ainda têm trabalho. A prosseguir esta lógica, ao maior conhecimento e saber humano corresponderia uma maior miséria do género humano. Esta situação chama os trabalhadores a intensificarem as suas lutas, mas agora, sob novas formas e num outro plano.
A capacidade de produzir mais com menos trabalho é uma questão política central da nossa sociedade. De agora em diante, as lutas sociais terão de encontrar critérios de distribuição da riqueza fora dos limites do emprego e do trabalho tradicionais. Repartir por todos o trabalho que existe. Criar formas de distribuição da riqueza fora dos paradigmas tradicionais. Pensar um outro futuro para a humanidade que esteja para além do quadro do trabalho-escravo e da exploração do homem pelo homem. Construir um mundo sem o trabalho alienado é, agora, o desafio.
A inteligência do ser humano e a sua capacidade de produzir saber e conhecimento. O conhecimento já disponível. A aceleração da nossa capacidade de produzir mais saber. As novas tecnologias. Fazem da educação, do ensino, da aprendizagem e da produção de conhecimento, a nova centralidade social. Já não somos chamados a usar a força mas a inteligência. Não nos pedem para reproduzir mecanicamente o aprendido. Pedem-nos para aprender e inovar continuamente. Os trabalhadores do conhecimento podem ser a nova vanguarda económica, social, cultural e política. Estamos perante novas possibilidades. E elas têm duas caras. Colocadas ao serviço dos poderosos permitem-lhe oprimir, marginalizar e excluir. Colocadas ao serviço dos cidadãos podem permitir-lhes dar início, finalmente, à construção de uma sociedade radicalmente democrática, onde a distribuição da riqueza e a produção de bens passem bem sem o trabalho escravo, mercantil, fatigante e alienante.
Os futuros 1º de Maio, mais do que dias de luta pela redução da opressão e da exploração, poderão ser momentos de celebração do trabalho inteligente, do conhecimento, do saber, da educação e de uma sociedade que ensina e aprende sempre.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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