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A escola ainda é alheia e adversa à cultura cigana

Sérgio Aires, coordenador do Grupo de Trabalho Inter-institucional sobre a Etnia Cigana

Sérgio Aires, 35 anos, Sociólogo, coordena, desde 1998, como técnico nacional, a Rede Europeia Anti-Pobreza/Portugal (REAP), o Grupo de Trabalho Inter-institucional sobre a Etnia Cigana (Grupo SINA), no âmbito da REAP, e a Rede Europeia SASTIPEN (Saúde e Comunidades Ciganas). No ano seguinte torna-se membro da Mesa Coordenadora Nacional da Rede Europeia Anti-Racista e é, desde 2001, Secretário do Bureau Europeu da European Anti-Poverty Network. No âmbito destas diferentes funções concebeu, coordenou e executou diferentes projectos de âmbito nacional e transnacional.
A PÁGINA foi entrevistá-lo para saber mais acerca da forma como a comunidade cigana vê a escola e como esta tem trabalhado a sua integração.

Partindo da sua experiência, de que forma encara a escola a comunidade
cigana? Ela é entendida como um instrumento de valorização pessoal e social ou como uma mera imposição da sociedade não-cigana? A esta questão não deve ser  concerteza alheia a falta de diálogo e de reconhecimento da diferença que ainda hoje caracteriza as duas partes...

A escola ainda é encarada por uma parte significativa das comunidades ciganas, sobretudo aquelas que enfrentam processos de maior pobreza e exclusão social, como um espaço alheio e adverso à sua cultura. A educação das crianças ciganas era tradicionalmente feita no seio da família e quando aceitam integrar um processo educativo fazem-no numa perspectiva minimalista, ou seja, apenas para dotar as crianças dos elementos mínimos - aprender a ler, a contar e a escrever. A escola é vista como um espaço de ?domesticação? onde, por desconhecimento e racismo, as crianças ciganas são mal vistas e mal tratadas. Esta é a perspectiva cigana.
Além disto, a permanência das crianças ciganas na escola, sobretudo as do sexo feminino, mostra-se complicada para as comunidades ciganas, pelo facto de na sua opinião potenciar os casamentos e as relações fora da etnia cigana. Não podemos esquecer que estas comunidades presentes no nosso território há mais de 5 séculos sempre estiveram votadas a processos de fortíssima exclusão social.
Esta visão tem vindo a alterar-se nos últimos tempos ? diria na última década. A esta mudança progressiva não são alheios os esforços de alguns projectos e iniciativas liderados por diferentes organizações, designadamente organizações não governamentais, e uma progressiva ? mas claramente insuficiente ? abertura das comunidades escolares à diferença presente no nosso território e à educação multicultural. A utilização de algumas medidas de política social ? como o caso do Rendimento Mínimo Garantido ? para favorecer e facilitar a integração também mostraram algumas potencialidades, ainda que, na minha opinião, necessitem de uma forte avaliação do seu verdadeiro impacto.
A solicitação da presença de figuras como os mediadores culturais por parte de algumas escolas é disso um exemplo. No entanto, ainda muito é necessário fazer para criar mais pontes e reforçar o diálogo. Na realidade ainda estamos muito longe de uma escola inclusiva...

Uma das conclusões do Relatório do Encontro Temático sobre Mediação organizado pela REAPN (2003) refere que é urgente continuar a apostar na sensibilização para a mudança, em particular nas escolas, já que um dos problemas que persiste é não se ter conseguido
promover ainda uma verdadeira "educação para a diferença". Para tal, refere-se no documento, é preciso preparar os professores e a escola. Que papel podem desempenhar os mediadores neste processo?

A mediação é um processo de construção de pontes. No entanto, e como refiro muitas vezes, utilizando uma imagem metafórica, as pontes têm que ser construídas a partir das duas margens... os mediadores pouco ou nada podem fazer sozinhos. Aliás a sua existência no estatuto de ?sozinhos? é mais prejudicial do que útil.
Ser mediador não é fácil, implica sair da sua comunidade, ultrapassar desconfianças na comunidade maioritária e enfrentar desconfianças na sua própria comunidade. Ora, fazer este processo sozinho, para além de muito difícil é até perigoso para os próprios mediadores que arriscam a ficar num limbo entre uma cultura e outra.
Por outro lado, o apoio das entidades formadoras de mediadores também não é suficiente. De facto, o processo de mediação é um processo de construção activa de relações entre duas ou mais comunidades. Os mediadores e o processo de mediação podem jogar um papel fundamental para tornar as nossas escolas mais inclusivas. Mas para que isto aconteça a iniciativa tem que partir dos dois lados da ponte e é aqui que na minha opinião é preciso concentrar os esforços....

Apesar do esforço de formação de mediadores ter sido iniciado na década de 90 e da contínua solicitação destes técnicos por parte das entidades públicas, continua a não existir nem uma carreira, nem enquadramento financeiro ou contratual dos mediadores já formados, bem a homogeneização e certificação das formações e da sua inserção profissional. Qual é a situação actual e o que tem vindo a ser feito pelo Estado para ultrapassar este impasse?

Em primeiro lugar quero deixar claro que não são assim tantas as solicitações por parte das entidades públicas. Se no caso das escolas existem algumas solicitações, noutras áreas, como na saúde ou na habitação tal não acontece.
Na realidade, pouco ou mesmo nada tem sido feito para ultrapassar este impasse.
Por outro lado, importa referir que a mediação é um processo, uma das soluções, enfim, um instrumento. Convém não pensar que simplesmente promovendo cursos de formação de mediadores os problemas ficam resolvidos. Na realidade e na minha opinião, Portugal deveria abordar esta questão da etnia cigana de uma forma séria, transversal e com recursos específicos.
À semelhança do que se passa em Espanha, se quisermos mesmo integrar este grupo na nossa sociedade de uma forma inclusiva, respeitando as suas especificidades e não provocando uma assimilação cultural completa, tal processo necessita de uma atenção específica e que se deveria traduzir no desenho e implementação de um Plano de Desenvolvimento Integral das Comunidades Ciganas.
Tal processo deveria ser também uma forma de activação e envolvimento destas comunidades, ou seja, deveria contar com a sua participação activa. De outra forma, como noutros sectores da nossa sociedade, estaremos sempre apenas a ?costurar permanentemente sobre remendos?... E não deixa de ser interessante pensar que enquanto União Europeia estamos a impôr estas acções aos novos países da União Europeia sem no entanto termos resolvido estas situações no seio de tantos estados-membros da União dos quais Portugal é um exemplo bem demonstrativo.

Se no início deste processo a figura do mediador aparecia
habitualmente associado a situações de resolução de conflitos, hoje sabe-se que esta actividade pode ser potenciada e rentabilizada em diferentes sentidos e âmbitos. De que forma?

Quem confunde mediação com resolução de conflitos equivoca-se completamente sobre o conceito de mediação. A mediação é um processo, uma forma, um ?local? de aprendizagem. É sobretudo fundamental percebermos de que falamos quando falamos de mediação. É preciso separar o trigo do joio. A concepção da ideia de mediação não está bem amadurecida e isso é um risco. Um enorme risco!
A noção que muitas pessoas têm de que os mediadores são bombeiros que estão ao serviço das nossas dificuldades enquanto sociedade maioritária para resolverem aquilo que não somos capazes, de que temos medo, que não desejamos que aconteça, com o qual não concordamos e que segundos os nossos valores achamos errado, é profundamente incorrecta e um equivoco. Este equivoco e esta noção deve ser combatida. É por isso que falo da necessidade de sabermos do que estamos a falar quando falamos de mediação. É que sobretudo hoje as palavras podem atraiçoar as melhores intenções...
Por outro lado, e como já afirmei anteriormente, a mediação não é um instrumento apenas ao serviço das escolas. Se este é um campo preferencial de actuação, outros se mostram muito interessantes, como é o caso da saúde, da habitação, do emprego...

De acordo com o mesmo relatório atrás referido, assiste-se, desde 2001, a uma estagnação deste processo relativamente a variados campos de intervenção, quando as necessidades conhecidas e diagnosticados demonstram que os problemas continuam a ser os mesmos. De que maneira poderá este impasse resultar num retrocesso das conquistas até agora obtidas?

É precisamente aqui que corremos o maior perigo. Na minha opinião, e na opinião de várias organizações que há décadas intervêm com comunidades ciganas, o pouco que se tinha conseguido ? e que na minha perspectiva para o tempo que havia decorrido até era bastante ? desmorona-se todos os dias. O associativismo cigano praticamente desapareceu e as associações que ainda existem encontram as maiores dificuldades de interlocução e legitimidade. Uma boa parte dos mediadores que estavam nas escolas tiveram que abandonar estes programas. Afinal trata-se de uma questão de sobrevivência e quase todos tiveram que regressar às actividades económicas tradicionais para sustentar as suas famílias.
Para além disso, produziu-se um processo de descredibilização do que se havia construído até ao momento. Corre-se o risco de muito rapidamente se destruírem as relações de confiança, de se frustarem expectativas. Claramente o risco de um retrocesso é evidente e até já se traduz em novas manifestações de xenofobia que nos fazem regressar aos tristes acontecimentos de Vila Verde em 1996.

A REAPN tem conduzido um conjunto de programas de formação dirigidos à comunidade cigana. Enquanto coordenador desses projectos, que balanço faz da sua execução? Que outros projectos estão actualmente em curso?

Não é só em relação às comunidades ciganas que temos desenvolvidos projectos. Temos aliás desenvolvido uma particular atenção em relação aos profissionais que intervêm em diferentes e estruturas (públicas e privadas) com estas comunidades. Desde 1996 que nos preocupamos em fortalecer as condições para que a ponte seja construída dos dois lados. Neste sentido temos procurado trabalhar a sensibilização e a formação de diferentes profissionais para uma mais fácil compreensão das especificidades da cultura cigana, procurando desmontar estereótipos e pré-conceitos. Para este trabalho muito tem contribuído a constituição desde 1997 do Grupo de Trabalho Inter-Institucional sobre a Etnia Cigana (Grupo SINA).
Actualmente estão em curso dois projectos os quais merecem um destaque especial: o Projecto ?Promotion of more active policies for the social inclusion of the Roma and Traveller minorities?, que tem como principal objectivo a identificação no âmbito dos Planos Nacionais de Acção para a Inclusão de diferentes países (Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda e República Checa) de metodologias e políticas específicas de promoção da inclusão destas comunidades.
A segunda fase deste projecto que se inicia agora irá debruçar-se sobre a criação de indicadores específicos de inclusão destas comunidades nos diferentes países, contribuindo desta forma para monitorar os respectivos planos no que diz respeito a estas comunidades.
Um segundo projecto prende-se com a continuidade de uma anterior iniciativa no âmbito do Programa Socrates / Comenius (Formación y Apoyo al Profesorado de Centros con Diversidad Cultural) e que tem como objectivo a identificação de instrumentos de formação e apoio para os professores do ensino secundário (na primeira fase do projecto trabalhou-se com os professores do ensino básico e os resultados deste projecto estão incluídos na publicação "Ensinar e aprender em contextos de diversidade cultural ? orientações e estratégias para as escolas?.
A REAPN, no âmbito das actividades com o Grupo SINA irá por outro lado continuar a promover iniciativas de reflexão e investigação. No ano de 2004, e tendo em atenção o contexto que vivemos, este grupo de trabalho irá voltar a promover um conjunto de encontros de reflexão tendo como objectivo preparar um conjunto de recomendações e propostas de trabalho.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 131
Ano 13, Fevereiro 2004

Autoria:

Sérgio Aires

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Sérgio Aires

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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