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Paisagem do (des)envolvimento

Se existe um tema que é discutido em meio a um emaranhado de ambiguidades, este é o do desenvolvimento. Seja por, digamos assim, sua ?raiz moderna?, seja pelas incômodas consequências, não necessariamente modernas, da lógica industrial (desperdício de recursos naturais não-renováveis, poluição do meio ambiente, distorções da urbanização, etc.), o desenvolvimento foi posto na berlinda. Isto não tem intimidado, no entanto, os que professam o credo (neo)liberal a continuarem a sua ?pregação teológica?. Roma locuta, causa finita: a autoridade do laissez-faire, laisser-passer continua a ordenar que se anexe, se for proveitoso para a produtividade, até as estrelas.

A crítica à tal visão já tem sido bastante realçada por formulações contemporâneas, e a bem da verdade, deve ser dito que ela pode ser questionada  mesmo a partir do próprio pensamento social clássico. A este respeito, sabemos, por exemplo, que a discussão sobre racionalidade formal e racionalidade substantiva, implica em conceber o desenvolvimento em dupla perspectiva: como algo concernente à evolução de um sistema social de produção, à medida que este torna-se mais eficaz - aumentando a produtividade -, mas também como algo que eleva o grau de satisfação das necessidades humanas. E assim, tornando mais estrita a abordagem, enformada com uma dimensão sócio-histórica, parece que há que se preferir Schumpeter às opções que traduzem os problemas económicos em sistemas de equações diferenciais, ou seja,  há que se preferir uma focagem que se preocupa com as mudanças estruturais e os processos que dão especificidade à história social.
Mas, dito isto, no reverso da medalha, como, de modo mais específico, se passa a conceber o desenvolvimento? Ou seja, feita a crítica à ideia convencional, o que então se apresenta?  Aqui começamos a entrar no centro de uma problemática.
Já faz tempo que, utilizando uma expressão dos discursos do contexto, debates têm sido empreendidos em busca de um outro desenvolvimento (another development). Encontros realizados, documentos escritos. A Declaração de Cocoyoc, o  Colóquio de Argel, o Relatório de Uppsala, as Conferências do Rio de Janeiro são exemplos de iniciativas que, buscando o outro desenvolvimento, impulsionaram um slogan que hoje volta à moda: pense globalmente e actue localmente (think globally and act locally). Desenvolvimento alternativo, ecodesenvolvimento e, no caso da relação com a educação, ênfase nas relações de sociabilidade (ao invés de na qualificação de recursos humanos para servir às estratégias económicas) ? todas estas foram elaborações teóricas que emergiram no decorrer das discussões.
As tantas terminologias contudo são indicativas de algo: falta saber o que efectivamente define o outro desenvolvimento. E ainda mais: é preciso precaução com acções que, dizendo-se a este filiadas, levadas a cabo por determinadas agências internacionais,  o que  fazem é  reproduzir e repor as condições que criam os problemas que se quer combater.
Entretanto, apesar das suas limitações ? ou exactamente por causa delas -, o diálogo com o outro desenvolvimento, ao invés de o condenar à partida, deve, pelo contrário, estruturar dispositivos que o credenciem como alternativa perante às demandas e os desafios decorrentes dos impasses da civilização industrial. Neste sentido, não há como não nos acompanharmos do economista hindu Amartya Sen, para dizer  que o desenvolvimento deve ser concebido como a ampliação da liberdade em todas as esferas da vida ? de par, claro, com a ampliação da igualdade social.  Isto significa realizar uma fusão entre os valores dos bens culturais, as formas de organizar o quotidiano e os bens materiais. E por envolver as diversas esferas da vida de forma simultânea, é que as respostas aos problemas do desenvolvimento devem estar enraizadas no conhecimento local.
Aliás, tal perspectiva apela para que se preste atenção a experiências que estão a germinar. Formas de cooperativismo aqui, novos movimentos comunitários acolá. Contra estas experiências, a acusação que pode ser lançada é de serem isoladas, específicas, etc. Mas, e daí, qual o problema? Em contraposição à esta acusação, convém realçar uma lição literária. Isto é, há que se ter em conta que mais vale aprofundar-se na análise de uma experiência específica, e nela encontrar a universalidade, do que perder-se em alegorias, em personagens que não têm substância. Tolstói sabia disso, e assim não foi por acaso que começou o romance Ana Karenina dizendo que todas as famílias felizes são felizes da mesma maneira, mas que cada família infeliz vive sua tristeza de forma única e inconfundível. Começou dizendo isso e, aprofundando-se na vivência específica da tragédia, escreveu um romance verdadeiramente universal.
Desse modo, portanto, não há razão para o outro desenvolvimento recusar experiências específicas. A sua qualificação geral deve ser fundada na singularidade. Deve desenvolver envolvendo todas as esferas da vida.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 131
Ano 13, Fevereiro 2004

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

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