Fomos ver a «Castro» ao Teatro Nacional de S. João. À porta aglomeravam-se pequenos grupos de adolescentes, depreendemos que alunos do Secundário, acompanhados pelo que presumimos ser os seus professores. No átrio sentia-se uma espécie de festividade contida que nos obrigava a inquirir, num diálogo feito em surdina, o que é que levaria aqueles jovens, naquela noite, a aventurar-se, através da encenação de Ricardo Pais, pelo mundo de luzes e sombras inexoráveis que António Ferreira, a pretexto do drama de Inês, de Pedro e de Afonso, soubera criar.
Num tempo feito de cruzadas cínicas que nos querem fazer crer que as escolas portuguesas são espaços votados ao mais completo abandono, aqueles rapazes e aquelas raparigas constituíam, naquele espaço e naquele momento, um desafio. Um desafio dirigido a todos aqueles que insistem em afirmar a degradação dos contextos escolares no presente, para poderem alimentar a ficção da excelência cultural das escolas do passado. Um desafio dirigido, por isso, aos que insistem em valorizar a infeliz inclusão, num manual de Português do 10º ano, do regulamento do «Big Brother», aí entendido como matéria de estudo, que afinal lhes serve como expediente rasca para justificarem a necessidade de retornarem a um tempo - mais idealizado que realizado - em que o ensino da literatura constituía uma condição do desenvolvimento de uma relação mais exigente dos jovens com a língua portuguesa. Será que a maioria daqueles que foram compelidos a estudar, nos antigos Curso Geral ou Curso Complementar dos Liceus, algumas das manifestações literárias mais emblemáticas de autores como Correia Garção, Luís A. de Verney, Nicolau Tolentino, Marquesa de Alorna ou Francisco Manuel de Melo são, hoje, leitores tão assíduos e interpelativos como seria de esperar que o fossem e se proclama que eles são ? Se isso não aconteceu, porque é que se continua a fazer crer, então, que as experiências culturais e educativas vividas, no passado, em contextos escolares diversos foram experiências exemplares, do ponto de vista da afirmação das escolas como espaços culturais pertinentes e significativos ? Embora seja necessário admitir que muitas das propostas e das reflexões produzidas no campo da inovação pedagógica contribuíram, voluntária e involuntariamente, para caricaturar o acto de aprender e o conjunto dos saberes que constituem parte do património cultural que compete à Escola divulgar, importa afirmar, no entanto, que a alternativa não reside na valorização mitigada e sonsa de um passado que não é possível nem desejável voltar a viver. Importa reconhecer, por isso, que a questão que se coloca às escolas de hoje tem mais a ver com o desafio que constitui entender e transformar o património literário num instrumento e numa oportunidade de formação do que propriamente em afirmar a concretização do projecto de uma escola que, pelo contrário, se deve assumir como uma espécie de templo literário, sujeito a rituais e a cânones que, para além de embalsarem os livros, contribuem para nos tolher a centelha de vida que, por exemplo, um poema de Natália pode suscitar naqueles que tenham tido a oportunidade de o aprender a ler. Que objectivo leviano é esse de querer que um adolescente de dezasseis anos se transforme numa espécie de crítico literário em miniatura, transformando-se num ser cuja disponibilidade para papaguear um conjunto de frases feitas sobre o futurismo em Álvaro Campos só é comparável com a sua incapacidade para sentir e reconhecer a plenitude e a luminosidade da poesia deste heterónimo de Pessoa ? Silêncio. Ouve-se o monólogo inicial de Inês, ingénuo e doce. Porque é que aqueles jovens o escutam ? Como é que o escutam ? Para que é que o escutam ? Não há respostas fáceis para esta questão. Não há, também, respostas certas e seguras. A não ser que se entenda que a aprendizagem da literatura nas nossas escolas se define, apenas, como um acto de imposição de significados, recusando-se assim o esforço e o investimento dos alunos como intérpretes, condição da importância formativa que tanto permite que a literatura adquira pertinência curricular, como conduz à valorização do papel do professor como agente de mediação incontornável entre os jovens e as obras literárias. Foi, por isso, que o escarcéu em torno do regulamento do «Big Brother» não nos aqueceu a alma, por aí além. É que nunca vimos esses militantes da causa da literatura a assumirem intervenções públicas tão veementes denunciando, por exemplo, as práticas docentes que contribuem para desobrigar os alunos da leitura das obras literárias originais, no momento em que os compelem antes, por força dos testes e da preparação a longo prazo para os exames nacionais, a estudar arduamente o conjunto de opúsculos onde se abordam e analisam, a retalho, essas mesmas obras literárias. O dilema em que Afonso mergulha, a solidão do poder onde submerge, pressente-se, agora, naquele palco. Na escuridão da sala não é possível vislumbrar o rosto dos jovens que nesse momento nos acompanham. Como é que entendem aquele momento dramático que, perante eles, os actores representam ? Não é esta uma pergunta legítima ? Não é uma pergunta obrigatória ? Não é, afinal, uma pergunta necessária ?
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