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Explicações é preciso: os filhos de peixe não sabem nadar.

É caso para perguntar, professores para quê?
É caso para afirmar: os bons alunos precisam de explicações. De contrário têm notas muito pouco diferentes das dos restantes colegas.

Que a teoria dos dons tinha fracassado já nós sabíamos.
Que com fome e frio os miúdos não estão motivadas para a aprendizagem escolar parece-nos evidente, muito embora ?nem só de pão viva o homem?.
Que o dito ?filho de peixe sabe nadar? sempre pôde ser lido tanto pelo lado da natureza como pelo da cultura também já sabíamos.
Que a probabilidade dos filhos da cultura legítima do Estado terem sucesso era maior que entre os putos provenientes de culturas eminentemente orais também já estava demonstrado.
O que nem todos sabíamos era que os alunos provenientes de culturas mais desvalorizadas pela escola e seleccionados até ao secundário já não precisavam de explicações, ao contrário dos meninos filhos de ?doutores e engenheiros? que, de repente, com sucesso e notas de bom não conseguiam atingir a bitola do excelente que permite o acesso às profissões mais procuradas. Os outros aceitam a nota que têm. Estes não!
Vejamos uma pequena história que a vida me contou recentemente.
Era uma vez um menino, aluno de boas notas no ensino básico, que concluiu o 9.º ano. Tinha 15 anos e transitara para o secundário com nota 5 a tudo.
Mudou de escola e encontrou um mundo novo: novo nível de ensino, novos colegas, novas disciplinas, novos professores, novas metodologias de ensino e, para seu espanto, dificuldades pela primeira vez. Os professores agora já não repetiam os exercícios como forma de preparação, para o teste. O menino não percebeu algumas coisas mas adiou para o dia seguinte o momento de ficar esclarecido, uma vez que nenhum dos outros colegas manifestara qualquer atitude sinónima de não compreensão. Só poderia ser acontecimento único e, certamente, resultado de qualquer desatenção.
No dia seguinte o menino voltou a não perceber e questionou o professor que respondeu que era preciso estar com atenção a tudo porque ele não podia repetir as coisas. A sua educação levou-o a não responder e a aguardar pelo intervalo. Ganhou coragem e perguntou a um colega se ele tinha percebido tudo ao que este respondeu que não. Que, aliás, não tinha percebido quase nada. Mais, também muitos dos restantes estavam em condição semelhante. Só que não avançaram com mais nenhuma ideia.
O menino percebeu então que algo de estranho se passava: os alunos não percebiam mas no dia seguinte todos tinham os trabalhos feitos, de forma exemplar, e avançava-se para a matéria seguinte sem que se respondesse ao professor que havia dúvidas da aula anterior. Por seu lado, o menino começou a pensar que algo de mágico se passava. Passava todas as noites a passar cadernos, a fazer os deveres escolares, estes, de resto, como sempre fizera, mas, agora, também a descodificar os processos de resolução de problemas na Física e na Matemática uma vez que a aula não tinha servido para isso. Sozinho encontrou muitos caminhos. Autoaprendizagem, diremos. Deixou de ter tempo para as actividades que até aí desenvolvia. Mas, mesmo assim, o tempo não lhe chegava para tudo.
A quantidade de dúvidas foi aumentando e já não conseguiu ultrapassá-las sozinho. Falou com a mãe, que era professora,  e levantaram algumas hipóteses que passaram a guiar as buscas de resposta para o imbróglio. O menino veio a descobrir ? quando um colega casualmente lhe disse que tinha de ir fazer os trabalhos das explicações ? que, afinal, todos os restantes andavam em explicações em quase todas as disciplinas. E era aí que faziam os trabalhos de casa. E era aí que esclareciam as dúvidas. E era aí que reforçavam o Inglês que aprendiam no Instituto Britânico e que a sua escola apenas servia para lhes fazer e corrigir os testes. E era aí que treinavam os tipos de exercícios os modelos de testes para conseguirem passar do vulgar 15 ou 16 para 18 ou, se possível, para 19 valores. O menino primeiro chorou e recusou-se ele próprio a ir para explicações. Ganhou coragem e falou com um professor. Depois com outro. Em todos os casos lhe disseram que agora estavam no secundário. Que não percebiam as dúvidas do menino. Que era preciso estudar.
O menino acabou por pedir à mãe para ir para as explicações. Vive agora, tal como os seus colegas, duas escolas paralelas: uma onde aprende, o centro de explicações; outra onde finge que aprende e onde espera por resultados que não lhe baixem a autoestima, que o situem na escala que sempre conheceu: nota máxima.
É caso para perguntar, professores para quê?
É caso para afirmar: os bons alunos precisam de explicações. De contrário têm notas muito pouco diferentes das dos restantes colegas.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 131
Ano 13, Fevereiro 2004

Autoria:

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades
Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades

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