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A montra da vida

Parou, sem quase querer, frente à montra. Do outro lado do vidro pousava um manequim: camisa azul-turquesa ao xadrez miudinho, colete de malha em tons de cinza azulado e calça de sarja azul-escuro. «Que elegância», sorriu para o vidro. Tentou que lhe viesse à memória a última vez em que se olhara ao espelho e pensara o mesmo de si. Nada. Nem no casamento do primo em que levou um fato de Terylene preto. Comprado na feira ao gosto da Palmira...
O sorriso desvaneceu. O seu próprio reflexo destronara o manequim. Agora via apenas uma camisola de malha com borboto a condizer com umas calças de ganga coçadas. Bom, também, aquela era a sua roupa de trabalho. Ninguém esperasse que fosse para «a obra» de camisinha. É certo que podia trazer uma muda no saco. Sim, isso era possível. Não precisava andar pela rua vestido «daquela» maneira. Como um qualquer. Em algumas ocasiões até se sentira a parecer mal no autocarro. Em dias como aquele em que trazia de casa as galochas já calçadas. Que coisa. Já se sentira assim numa outra altura. Envergonhado. Quando tinha aulas de educação física e era o único que ia para a escola de fato-de-treino. Os colegas troçavam um bocado. Mas era um puto. E nessas alturas a coisa incha, desincha e passa. Agora não.  
«30 euros a camisa?» A marca paga-se bem. Sempre achou que a roupa comprada na feira fazia um vistaço igual à da loja. Com a vantagem de ser a metade do preço. Ao ver a montra percebia que no fundo, no fundo não era bem assim. Se a Palmira o visse com aquele modelito? «40 euros o colete» Com a indumentária completa até arranjava outra Palmira. Não que não gostasse da rapariga. O namoro durava há mais de dez anos. Mas? faltava-lhe estilo. Talvez fosse o excesso de furos nas orelhas. O piercing no nariz. E depois o fato-de-treino. Ao fim-de-semana Palmira não vestia outra coisa. Dizia que já sofria muito à semana por ter de andar nos trinques. Afinal trabalhava na recepção de uma clínica de análises. Não podia descurar o look. Ainda que passasse o dia a atender velhinhos. «50 euros as calças».
Estivesse ele empregado num escritório e à semana só andaria de camisa e sapatinho de vela. Sim, porque ele, ao contrário de Palmira, até tinha um certo estilo natural. Cabelo loiro escuro, olho castanho mel. Um look mal empregado em cima dos andaimes. Difícil seria mudar de ofício. Era questão de fazer um curso. Ele até tinha cabeça. Tanto que acabou o 9º ano. Ia ser um orgulho para os pais. Sobretudo para a mãe. De certeza que a sua roupa se lavaria melhor se não estivesse encharcada de argamassa. Coitadinha da Palmira. Teria de arranjar outro que a levasse ao shopping no fim-de-semana. «Que elegância», pensou quanto abria a carteira. 30 euros: o orçamento da semana. O equivalente a cinco almoços, um maço de tabaco, duas colunas de totoloto, mais a meia torrada e pingo da Palmira: à quarta-feira saía mais cedo da obra e criara o hábito de levar a rapariga a lanchar ao Café da Praça. Voltou a pôr os olhos na montra. «Que se lixe». Um homem tem de tomar decisões. E assim comprou a camisa e prometeu a si mesmo mudar de vida.


  
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Edição:

N.º 131
Ano 13, Fevereiro 2004

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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