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A Página numa conversa com professores de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe

Estiveram presentes no VI Congresso do Sindicato dos Professores do Norte, realizado em Novembro do ano passado na Póvoa do Varzim, como representantes das delegações de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Aproveitando a sua passagem por Portugal, A PÁGINA entrevistou Nicolau Furtado e José Barros, do Sindicato Democrático dos Professores de Cabo Verde, e Bartolomeu Espírito Santo e Angélica Loureiro, do Sindicato dos Professores e Educadores de São Tomé e Príncipe, procurando retractar o sistema educativo e a actividade sindical nestes dois países africanos de língua oficial portuguesa.

Cabo Verde:
Apostar na qualidade do ensino

De uma forma sucinta, como caracterizaria o sistema educativo em Cabo Verde e quais os principais problemas com que se confronta?

Nicolau Furtado (N.F.): O sistema educativo em Cabo Verde é uma herança do regime colonial português e julgo que, actualmente, já não se coaduna com a realidade do país. Uma das principais marcas dessa herança, que ainda hoje se mantém em prática, é a transição automática de ano lectivo, facto que, indirectamente, está a prejudicar as gerações vindouras. Para discutir estas e outras reformas necessárias, o nosso sindicato já pediu uma audiência ao ministro da Educação cabo-verdiano no sentido de se proceder à reforma do sistema educativo e adequá-lo às necessidades que se impõem.
Em relação ao parque escolar, e embora haja algumas escolas que necessitem de melhoramentos, pode considerar-se satisfatório, principalmente nos centros urbanos, onde os professores são também mais qualificados. No interior das ilhas a oferta não tem a mesma qualidade, e devido à necessidade de suprir a falta de professores muitos deles exercem a profissão sem habilitações para a docência.

Como é organizada a formação de professores em Cabo Verde? Os professores recebem formação no próprio país?

Jorge Barros (J.B.): Actualmente, somente cerca de 60% dos professores cabo-verdianos são formados a nível interno, em todos os níveis de ensino. Os restantes recebem formação em países terceiros, nomeadamente em Portugal, Brasil e Estados Unidos, mas o país está a criar condições para que a formação se passe a realizar exclusivamente em território nacional, com a qualidade que merecem. Nesse sentido, o SINDEP acordou com o ME cabo-verdiano que todos os professores sejam habilitados para a docência nestes moldes até 2010.

O governo cabo-verdiano traçou alguma meta para o desenvolvimento e melhoria do sistema educativo no arquipélago a médio ou longo prazo?

N.F.: Nenhum país consegue desenvolver-se com base apenas em quadros de nível superior; é necessário que existam técnicos de nível intermédio e apostar na formação profissional. Dado que a massificação do ensino não está a produzir os resultados desejáveis para o país, nos últimos anos o governo mudou de estratégia e optou por apostar na qualidade do ensino e na formação profissional como áreas prioritárias.

Segundo tenho conhecimento, a falta de manuais escolares e de livros didácticos é outro dos principais problemas em Cabo Verde?

N.F.: Sim, esse é outro dos problemas com que nos confrontamos. Temos algumas bibliotecas equipadas, mas são insuficientes para dar resposta às solicitações. Para tentar suprir alguma dessa carência, já contactamos com os colegas do Sindicato dos Professores do Norte no sentido de nos apoiarem através do envio de material para conseguirmos dar resposta à procura dos nossos associados, sobretudo no que diz respeito ao ensino secundário e superior.

Qual é a média de alunos por professor em Cabo Verde?

J.B.: Esse número varia conforme as ilhas e os concelhos a que nos referimos. De uma forma geral, no entanto, pode dizer-se que a média de alunos por professor se situa entre os 20/ 30 no ensino básico e os 38/ 40 no ensino secundário.

E quanto à taxa de escolarização?

J.B.: Cabo Verde tem actualmente uma taxa de escolarização no ensino básico próxima dos 90%. Apesar de a tendência apontar para a diminuição do número de alunos ? fruto da política de controlo de natalidade que o governo tem levado a cabo ?, a migração interna do interior para as cidades faz com esse número esteja gradualmente a aumentar nos principais centros urbanos.

Cabo Verde foi um dos países que se comprometeu a generalizar o ensino básico até 2015, de acordo com os objectivos do milénio estabelecidos em Dakar, capital do Senegal, sob os auspícios da Nações Unidas, em 2000. Julga que esse objectivo será cumprido?

N.F.: Cabo Verde é um país que está permanentemente condicionado a nível financeiro para desenvolver qualquer tipo de projecto, nomeadamente a nível educativo. Por essa razão, o governo estabeleceu acordos de cooperação com países terceiros e organizações internacionais e em negociação com o Fundo Monetário Internacional e com a União Europeia no sentido de investir na formação de professores e procurar atingir a universalização do ensino básico em 2015.

Existem instituições universitárias no país?

J.B.: Apesar de a oferta a nível de ensino superior ainda não cobrir todas as necessidades ? escassez que se deve sobretudo à inexistência de um corpo docente qualificado ?, Cabo Verde oferece cursos universitários em educação, economia, gestão empresarial, engenharia e, desde há três anos, foi firmado um acordo de cooperação com o Instituto Piaget para complementar a oferta de formação na área da Educação.

Em que contexto surge o Sindicato Democrático dos Professores de Cabo Verde (SINDEP), que representam neste congresso?

J.B.: O SINDEP foi originalmente fundado em 1993, mas nessa altura não houve condições para o sindicato avançar para a consolidação. Em 2000 um novo grupo de professores relança o projecto, fazendo trabalho de terreno em todas as ilhas e levando ao governo propostas concretas, das quais resultaram, nomeadamente, o novo estatuto profissional dos professores cabo-verdianos.
De entre as conquistas por nós obtidas podemos destacar o direito a assistência médica ? somos o primeiro grupo profissional da administração pública do país a consegui-lo ?, o aumento do período de férias de 22 para 32 dias úteis, estando actualmente em discussão as condições de aposentação e uma nova grelha salarial para o ensino secundário, já que os professores do ensino básico beneficiaram recentemente de um ajuste salarial.
A nossa principal dificuldade enquanto organização reside no facto de dependermos exclusivamente do regime de voluntariado dos associados para todas as tarefas. Além disso, temos ainda de contar com a dispersão geográfica das ilhas e a falta de acessos, que nos dificulta o trabalho de sensibilização junto dos professores. Dessa forma, a taxa de sindicalização não ultrapassa ainda os 45% do total de 6775 professores do arquipélago.

São Tomé e Príncipe:
Generalizar o ensino básico até 2015

Os conflitos sociais e políticos que têm abalado a sociedade são-tomense têm com certeza impedido o desenvolvimento de um sistema educativo estável. Qual é a situação actual? 

Bartolomeu Espírito Santo (BES): Sim, de facto em São Tomé e Príncipe temo-nos confrontado recentemente com problemas sociais e políticos que nada beneficiam o sector educativo do país, a que se juntam os problemas herdados do passado, nomeadamente em termos de infra-estruturas. As salas de aula do ensino básico, por exemplo, acolhem em média 40 alunos e no ensino secundário esse número eleva-se a 80. É uma situação claramente anti-pedagógica e consideramos que o governo tem total responsabilidade nesta matéria.
Este ano, por exemplo, milhares de crianças e jovens perderam o ano por causa da instabilidade política vivida nos últimos tempos e dificilmente poderão recuperá-la depois de ultrapassada a idade de frequência da escolaridade obrigatória ? actualmente de oito anos.
Além disso, o governo decidiu encher as salas de aula como forma de generalizar o acesso ao ensino básico, mas os professores não sabem o que hão-de fazer com tantos alunos e estes não sabem o que andam a fazer na escola. Desta forma, os alunos que transitam de ano não saem preparados e aos que ficam no sistema não lhes é oferecida qualidade de formação.

A falta de preparação dos alunos é habitualmente imputada aos professores. É essa também a posição do governo são-tomense?

B.E.S.: De facto, o professor é habitualmente o bode expiatório dos males que afectam o sistema educativo, mas não considero que seja essa raiz do problema, antes a falta de uma política objectiva e coerente para o ensino por parte do governo, que conduz a altas taxas de insucesso e de abandono escolar.

Quais são os principais problemas enfrentados pelos professores no país?

Angélica Loureiro (AL): O principal problema reside, na minha opinião, na falta de manuais escolares. O ensino em São Tomé e Príncipe está, na prática, ligado ao sistema de ensino português e os manuais reflectem essa situação de dependência. Apenas a disciplina de História tem manuais próprios; as restantes disciplinas estão orientadas de acordo com os currículos portugueses. O governo tem garantido que está a efectuar diligências no sentido de resolver esta questão, mas o facto é que ainda não chegaram novos manuais às escolas.
 
Qual é a actual taxa de escolarização em São Tomé e Príncipe?

B.E.S.: À volta de 90% no ensino básico.

O governo tem alguma perspectiva de alargar a taxa de frequência e o acesso à educação ? de acordo, aliás, com os compromissos estabelecidos em 2000, em Dakar, no Senegal?

A.L.: Sim, de facto o governo pretende generalizar o ensino básico até 2015, mas essa intenção parece estar expressa apenas no papel. O executivo diz que gasta uma percentagem significativa do Orçamento de Estado no sector educativo mas isso não corresponde à prática, ou pelo menos ainda não é visível, já que continuam a existir muitas carências em termos humanos e materiais.
Apesar disso, é de sublinhar o esforço governamental em generalizar o acesso à educação, nomeadamente através de um plano de alfabetização que começou a ser posto em prática no ano passado. Em termos de cooperação internacional Portugal é hoje o nosso principal parceiro, mas o país conta igualmente com o apoio da Unesco e da Unicef. Temos consciência de que as metas traçadas em Dakar, nomeadamente a generalização de um ensino básico de qualidade, são um grande desafio, mas temos de ir avançando aos poucos e à medida das nossas possibilidades.

Qual é a situação em termos de ensino superior?

A.L.: Em São Tomé e Príncipe existe um centro politécnico vocacionado para a formação profissional e um instituto superior politécnico, orientado para uma formação especializada, que, no entanto, não atribui o grau de licenciatura, sendo necessário obtê-la em países estrangeiros através de acordos de cooperação. Mas um dos principais projectos do governo na área da educação passa precisamente pela instalação de instituições de ensino superior universitário no país.

Há quanto tempo existem sindicatos democráticos em São Tomé e Príncipe?

B.E.S.: Há cerca de quatro anos.

Quais são as principais dificuldades com que se depara o Sindicato dos Professores e Educadores de São Tomé e Príncipe neste início de actividade?

B.E.S.: Julgo que a maior dificuldade da actividade sindical no país advém da falta de tradição organizativa, proibida durante a era colonial e restringida depois da independência pelo poder político, que não permitia que os sindicatos fossem absolutamente livres. Foi precisa a queda do partido único para que o sindicalismo pudesse finalmente assumir-se livremente. Apesar disso, depois da nossa criação o governo tentou dividir-nos em diversas estruturas, o que não faz qualquer sentido num país onde existem cerca de 2 mil professores.
A taxa de sindicalização ronda os 100 por cento, mas é necessário muita vontade e muita dedicação para levar a cabo esta tarefa. E o apoio que temos recebido de organizações congéneres, como o Sindicato dos Professores do Norte, que nos convidou para o seu VI congresso, é extremamente importante para nós em termos formativos.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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