Página  >  Edições  >  N.º 130  >  Mundo letrado x mundo iletrado: as estratégias para a retenção do pensamento

Mundo letrado x mundo iletrado: as estratégias para a retenção do pensamento

Nas culturas de forte oralidade ? o pensamento deve surgir em padrões fortemente rítmicos, equilibrados, em repetições ou antíteses, em conjuntos temáticos padronizados, em provérbios que são constantemente ouvidos por todos, de forma a vir prontamente ao espírito, e que são eles próprios modelados para a retenção e a rápida recordação ? ou em outra forma mnemónica.

Nas culturas de forte oralidade, portanto, com pouco ou nenhum uso da escrita, para resolver efectivamente o problema da retenção e da recuperação do pensamento cuidadosamente articulado, é preciso exercê-lo segundo padrões mnemónicos, moldados para uma pronta repetição oral. O pensamento deve surgir em padrões fortemente rítmicos, equilibrados, em repetições ou antíteses, em conjuntos temáticos padronizados, em provérbios que são constantemente ouvidos por todos, de forma a vir prontamente ao espírito, e que são eles próprios modelados para a retenção e a rápida recordação ? ou em outra forma mnemónica. As reflexões e os métodos de memorização estão entrelaçados.
Nessa culturas a própria lei está encerrada em adágios formulares, provérbios, que não constituem mero adornos jurídicos, mas são, em si mesmos, a lei.
O discurso escrito desenvolve uma gramática mais elaborada e fixa do que o discurso oral, porque nele o significado depende mais da estrutura linguística, uma vez que carece dos contextos normais inteiramente existenciais que circundam o discurso oral e ajudam a determinar o significado, de certa forma independentemente da gramática.
A problemática do mundo letrado/mundo iletrado está bem presente no filme ?Central do Brasil? de Walter Salles, e é rica de sentidos. A figura do analfabeto sintetiza como nenhuma outra a ideia do indivíduo privado não só dos bens materiais, mas também do conhecimento e da comunicação. É alguém sem vez e sem voz no alegre mundo do consumo globalizado. Na estação, pessoas se acercam de Dora, a escrevedora de cartas. Sem pruridos e sem vergonha de expressarem seus sentimentos mais profundos, as pessoas fazem de Dora a mediadora entre o mundo da oralidade e o mundo da escrita.
Muito da trama do filme está permeada por esta dualidade. O mundo letrado encontra ainda marcas do mundo da oralidade, marcas que alicerçam a transmissão cultural de comunidades que não tiveram acesso ao código escrito. Por isso o recurso á memória, às formas repetitivas, se constitui num traço muito particular desse universo oral. Isaías, o irmão que Josué acaba de conhecer, manda-lhe repetir o trava-língua, essa modalidade de parlenda em prosa ou em verso, bem característica das culturas de oralidade, ordenada de tal forma que se torna extremamente difícil e às vezes, quase impossível, pronunciá-la sem tropeço: ?Lá atrás da minha casa tem um pé de umbu botão, umbu verde, umbu maduro, umbu seco e umbu secando? (Carneiro & Bernstein, 1998: 91). Numa outra conversa, novamente Isaías, pede ao irmão para dizer: ?Diga cinco vezes em carreado, sem errar, sem tomar fôlego, vaca preta, boi pintado. Diga? (Idem, p. 97).
Em uma cultura letrada ou impressa, o texto une fisicamente tudo o que contém e permite recuperar qualquer tipo de organização de pensamento. Nas culturas orais, nas quais não existe texto, a narrativa serve para unir o pensamento, de modo mais compacto e permanente do que os outros géneros
Portanto, a memória do que foi dito apresenta poucos problemas nas culturas orais, desde que o texto seja curto, e a distância no tempo, pequena. Textos mais longos podem ser preservados por mais tempo, desde que espacialmente preparados. Recursos mnemónicos, associados a figuras de linguagem, à fala metrificada e poetizada permitem a preservação e a recuperação da forma verbal de informações culturalmente significativas. Contudo a memorização ipsis verbis parece uma actividade exclusiva das culturas com escrita, pressupõe a existência de uma versão original ou fixa com a qual a memória pode ser confrontada. Sem tal transcrição, há uma amplitude maior no que é aceito como versão exacta do que foi dito. Em consequência, a distinção directa e indirecta pode não ser tão clara nos contextos orais e, de modo mais amplo, nas culturas orais.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

José de Sousa Miguel Lopes
Univ. do Leste de Minas Gerais, Brasil
José de Sousa Miguel Lopes
Univ. do Leste de Minas Gerais, Brasil

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo