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Uma Abelha na Chuva - a reedição de um ?clássico? da nossa literatura

Mais de vinte anos após a morte, Carlos de Oliveira (1921-1981) continua na primeira linha da nossa literatura e os seus livros, depois de serem reunidos num único volume da Obra Completa (Ed. Caminho, 1992), aparecem agora reeditados título a título para os tornar acessíveis ao maior número de leitores. Assim, com a reedição de Finisterra e de Uma Abelha na Chuva, a Assírio & Alvim traz de novo para os escaparates uma obra literária única pelo seu rigor e verdade estética e reposiciona o autor de Casa da Duna em plano de evidência para quem gosta dos seus livros.

Ora, o que mais interessa colocar em destaque, na releitura de Uma Abelha na Chuva, é a atitude de um romancista que pela qualidade  das suas obras, se não cansou de ?rever? e de ?emendar? até ao cansaço a forma escritural dos seus poemas e romances. Por isso, é sempre um reencontro estimulante pelo prazer da leitura que este romance já clássico nos consente e onde a sua ?escrita? nos prende mais do que a história que nele se narra, porque diante dos nossos olhos, na comoção emocional de a escrita - poética, lírica ou pungente - nos fazer seguir ao lado do próprio Narrador pelos lugares e memória distante das terras gandaresas, com os seus dramas e contrastes, os seus conflitos de família e de dinheiro, as cruzadas intenções e vícios de uma mentalidade e consciência pequeno-burguesa, captadas nos aspectos mais vivos de uma forma de expressão em que o sentido rigoroso da escrita e a verdade do que se conta ganha essa dimensão visceral e exacta de tudo estar, na imaginação e lembrança do próprio romancista, ainda presente e as personagens desfilarem na nossa frente, como no filme de Fernando Lopes, na violência e na força das palavras, no modo de ser ou de andar, de viver ou de morrer.

Ora, é por esta sabida e conseguida?arte do romance?, na linhagem que nunca enjeitou de um Camilo ou de um Graciliano (e Uma Abelha na Chuva por vezes recorda a mesma densidade poética de atmosferas humanas em luta de interesses ou de valores profundamente humanizados que paira, por exemplo, em São Bernardo ou Vidas Secas), que o autor de Finisterra se impõe e nos revela na flagrante confirmação de a escrita ser por excelência esse acto de lavrar as palavras, como disso fala num belo texto sobre a poesia de Afonso Duarte. Mas a ?forma? e o ?sentido? do que mais interessa narrar e descrever confundem-se nesse magma literário que confere à sua prosa uma inexcedível qualidade e esse tom demasiado pessoal de quem não concebia ?uma literatura intemporal, nem fora de certo espaço geográfico, social, linguístico?, para quem, em essência, a ?escrita? se impôs como modo de semear florestas, ?mais enredadas do que as do padre Bernardes?, e saber como é sempre esse acto total e absoluto, sensorial e ontológico em todos os sentidos do corpo: ?Escrevo e cada página é a maranha inextrincável. Emendas, riscos, setas para as margens do papel; os acrescentos metem-se uns pelos outros como as frondes enoveladas?.

Sabemos deste modo como a escrita de Uma Abelha na Chuva remete o leitor para o sentido fílmico e visual de toda a tecitura vivencial do romance. Não existem pormenores excessivos, nada está a mais, as palavras são estritamente as necessárias, pesadas e compassadas numa rigorosa arquitectura, num ritmo certo e preciso: ?O homem cruzou a praça devagar, entrou no Café Altântico e sacudiu as botas com cuidado no capacho de arame. Sentou-se, pediu um brandy e engoliu-o dum trago. Na sua lentidão natural era a única coisa que fazia com alguma pressa. Encostava o copo à boca bem aberta, imobilizava-o um momento e de seguida, num golpe brusco, atirava-o à garganta. Repetiu a operação segunda e terceira vez. Pagou e saiu. Atravessou de novo a praça, batendo pausadamente o tacão das botas, deixando cair os últimos pingos de lama e dirigiu-se à redacção da Comarca de Corgos, sempre no mesmo passo oscilante e pesado, como se o levasse a custo o vento que arrastava no chão as folhas quase podres dos plátanos?.

E por aí se evidencia o drama de consciência de Álvaro Silvestre, que se penitencia de ter passado a sua vida ?a roubar ao balcão ou nas feiras, na soldada dos trabalhadores e na legítima de seu irmão?, enfim, nesse fundo remorso de ter levado a vida ?a roubar os homens na terra e a Deus no céu?, depois de casar com uma fidalga em decadência (Dona Maria dos Prazeres, descendente de uma respeitada família, a dos Alvos Sancho), que em Corgos cresceu e enfraqueceu nos valores tradicionais e não teve outro remédio que não fosse aceitar a fortuna de um lavrador rude e ignorante, mas rico, por quem sempre sentiu um nojo físico e por isso não teve filhos, na retracção de medos, remorsos e outros interesses. Mas, repetimos, não é tanto a ?história? que se narra que mais importa sublinhar e antes a ?forma? e o ?sentido? desse modo de nos descrever o quadro físico e psicológico, no desfiar calmo e exacto de todos os seus contrastes, linhas e sombras da própria trama romanesca. E sempre na memória e presença das terras pliocénicas de uma Gândara que foi esse pano de fundo, o ?corpus? geográfico e humano dos romances de Carlos de Oliveira e até de muitos dos seus poemas: ?De súbito, qualquer lembrança remota parecida com aquilo, dias de chuva, a cabeça fora da janela, a boca aberta a aparar as goteiras do telhado, um perfil de criança recortado ao longe. (...) O vento arrastava a poeira, apagava os astros, sumia tudo e na escuridão as coisas fermentavam. Apodreciam?.

E assim a memória se distende e redescobre, entre os campos baixos de Coimbra e a ria de Aveiro, de Montemor a Cantanhede e Mira, quase até Vagos, lugares rememorados nas páginas de Uma Abelha na Chuva, na evocação das sombras que sempre povoaram o imaginário do poeta: ?Nos pinhais cerrados a névoa era mais branca do que a luz difícil. Pelos barrancos. Ao dobrar uma moita de espinheiros, deu com a antiga olaria de mestre António, transformada agora em oficina de santeiro?. Porém, é este sentido fortemente visual e cinematográfico que nos faz olhar e ver nas páginas deste romance como a ?realidade? se redescobre ou transfigura: ?O som matinal das trindades ondeou pela aldeia? quando a descrição e notícia da morte do cocheiro Jacinto se revela talvez como dos momentos maiores desta prosa encantatória, na incidência dos seus próprios contrastes descritivos e psicológicos. ?A evidência embateu na suspeita, transformou-a em verdade: mataram-no, meu Deus. Largou pela azinhaga abaixo, passou por eles sem parar, galgando a lama,de braços abertos, como se fosse voar da terra, sumiu--se entre os espinheiros,  rápida como  as aparições,  estou só no mundo com o meu filho, atirou-se à ladeira que levava a casa de Álvaro Silvestre e enfiou pela cozinha, alucinada?. E de novo o olhar do autor se cruza ou confunde com o das suas personagens, nelas mistura, não de todo inocentemente, ?o que vê, o que sabe, o que a sua personagem vê e sabe?, como lembra Barthes. Mas o ?discurso? desdobra-se por outros sentidos, constrangimentos, tolerâncias ou liberdades de associação dos  signos utilizados e o discurso resulta, afinal, como o acto de desvendar outros discursos nas falas e gestos das personagens que assumem vida própria no cenário das tempestades que desencadeiam e não controlam. E, face aos remorsos e súbitos medos de Álvaro Silvestre, quando o pátio da velha casa se enche de gente agressiva e inquieta perante a notícia confirmada da morte de Jacinto, Dona Maria dos Prazeres ainda lhe grita de vingança e calado desprezo: ?Não te matam, descansa, posso lá ter tamanha sorte, hei-de aturar-te até ao fim da vida, até que Deus me leve deste inferno que é a tua casa. Tenho nojo de ti, nojo, entendeste bem? Que te admiras tu que eu sonhe? Sonhos sobre sonhos, sempre, para esquecer a tua cama e o pão da tua mesa?.

Pouco mora aqui de um ruralismo provinciano, de ressaibos bem camilianos, porque o sentido do romance avança na perspectiva literária tantas vezes defendida por Carlos de Oliveira de não querer engrossar a vasta colheita perdida na literatura,?e eu que o diga nesta linguagem de vocábulos pesados como enxadas, na voz lenta, difícil, entrecortada de silêncios, que os cavadores e os mendigos me ensinaram, lá para trás, no alvor da infância?. E é esse sentido grandioso e trágico de recuperar o tempo e a memória do ?paraíso perdido? que Carlos de Oliveira ergueu, nos romances e na sua obra poética, como ?húmus? de uma obra que ?ao nível das imagens, ao rés do magma emocional, patético, tenebroso?, como assinala Eduardo Lourenço, fez nascer essa contradição viva que tem lugar na sua poesia e ainda neste belíssimo romance. Porque foi essa a forma assumida de contradição que deu ao autor de Alcateia a certeza para lucidamente sempre evitar, na poesia e na prosa, que ?a tempestade das coisas desencadeadas? corrompesse ou destruísse esse todo literário consolidado pelos horizontes da morte e da vida, na circular insistência do tempo e na incessante memória das gentes e paisagens solitárias dos palheiros, areias e pinheirais da sua Gândara inesquecível. E, sem pressa nem qualquer ?estratégia de glória?, nos deixar uma obra literária que é um superior exemplo de escrita no rigor e verdade que está bem presente nos seus romances, em especial em Uma Abelha na Chuva.

Carlos de Oliveira
UMA ABELHA NA CHUVA (romance)
Ed. Assírio & Alvim, Lisboa - 2003.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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