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Constituição e Direitos

A propósito de pedofilia muito se tem recorrido à Constituição. Importa referenciar historicamente este texto jurídico-político fundamental. Saliente-se que a nossa primeira Constituição, aprovada pelas Cortes Constituintes a 30 de Setembro de 1822 e jurada pelo rei D. João VI a 1 de Outubro, assumia-se como texto progressista, contrariando a tendência europeia no sentido da aristocratização do Liberalismo. As vicissitudes históricas decorrentes do confronto entre adeptos do absolutismo e apoiantes do constitucionalismo, levariam a uma solução de compromisso concretizada na Carta Constitucional de 1826, outorgada pelo imperador do Brasil, D. Pedro I, seguindo aliás o modelo constitucional em vigor no Brasil, com a Carta de 1824. Um das diferenças mais significativas entre a Constituição de 1822 e a Carta de 1826, sublinhando diferentes concepções e prioridades ao nível dos direitos e liberdades, consiste na primazia dada ao capítulo dos direitos no texto  mais democrático de 1822 onde surgem logo em primeiro lugar, enquanto na conservadora Carta são relegados para o último capítulo. O século XIX português apresentou desde logo esta brecha fundamental no pós-absolutismo: progressistas e conservadores, os que privilegiam os direitos e as liberdades e os defensores do primado da autoridade, dos deveres e da obediência. Duas perspectivas de constitucionalismo que importa confrontar com as realidades históricas da época, para se poder estudar comparativamente a evolução da democracia em Portugal até aos dias de hoje.
Face a uma sociedade profundamente enraizada nos valores da Igreja e do Absolutismo, são muitos os historiadores e juristas a considerar o texto constitucional de 1822 desfasado em relação à realidade. Progressista em demasia, transformando o Rei em mero joguete nas mãos dos deputados, a nossa primeira Constituição revelava-se sobretudo um processo de intenções de difícil aplicabilidade,  em virtude do arrojo das suas propostas e da distância em relação à realidade histórica portuguesa. Muitos liberais moderados achavam mesmo que por aí abriu-se uma porta à pronta reacção absolutista, o que mais tarde a História não confirmou, pois D. Miguel, já com a Carta em vigor, dissolveu as Cortes e restaurou o regime absoluto. Em todo o caso, poder-se-á concluir que a Carta estava mais conforme com os tempos, quer interna como externamente, e daí a sua longa vigência durante todo o século XIX e inícios do século XX, até à revolução republicana de 1910.
A 1ª República vai recuperar o espírito revolucionário de 1820, e continuar o trabalho longamente interrompido pela facção menos democrática da sociedade portuguesa. Com o Estado Novo o espírito conservador é de novo restabelecido até ao 25 de Abril de 1974, que mais uma vez vai recuperar a tendência progressista já iniciada em 1820 e 1910. A actual Constituição de 1976, não obstante as revisões a que foi sujeita, é pretexto para polémicas em volta destas duas tendências que perduram e se digladiam desde o início do século XIX; daí as vozes que proclamam a sua revisão profunda, dando eco aos conservadores e aqueles que pretendem manter o seu espírito democrático, particularmente no concernente aos direitos e liberdades. E a História conhece novos mas sequentes desenvolvimentos, quando verificamos como está longe a prática da cidadania e o texto constitucional em vigor nos dias de hoje.
Mas se a actualidade se afasta da Constituição por deficiência de direitos, então não é o texto constitucional a poder ser considerado anacrónico, mas sim a sociedade portuguesa que não evoluiu o suficiente, de modo a que a prática democrática seja exercida com naturalidade no dia a dia. Só depois deste esforço é que se poderá pensar em revisões profundas ao nível da Constituição, sendo que os Direitos e as Liberdades deverão constar sempre como prioridade, pela razão que são a essência da própria filosofia constitucional.


  
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

Paulo Gonçalves
Professor, Porto
Paulo Gonçalves
Professor, Porto

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