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Uma escola portuguesa, com certeza

Há bem pouco tempo, há mais ou menos duas ou três décadas atrás, ser português significava, entre outras coisas, possuir uma educação rudimentar. Existiam nessa altura poucas escolas em Portugal. E agora? Será que as coisas mudaram muito? Agora existem muitas escolas, toda a gente sabe, mas delas os portugueses parece que saem quase como entraram, sem saber ler, escrever ou contar.
Pois é, muitas escolas, mas em que nada acontece de concreto. Não existem de verdade. Fazem lembrar aqueles patos cacofónicos dos ventríloquos. Parece que falam, mas não. 
Já fui professor em muitas dessas escolas, das que só existem no papel, das que não são escolas de verdade. Este ano, porém, penso que desvendei o mistério. Já sei porque é que elas são como são. É simples. É porque são escolas portuguesas. É uma fatalidade nossa.
Não é, certamente, por culpa de alguém, alunos, professores ou outros, nem tem a ver com o modo como estão organizadas. Acontece simplesmente que nunca chegaram a sair do papel. São portuguesas. Algumas até acreditam que são modelos disto ou daquilo, mas é só porque não sabem que escolas de verdade existem.
Claro que não se chega a esta conclusão de repente. Demora tempo. Mas quem, como eu, tiver sido professor não apenas de uma escola, mas de muitas, do Norte, do Sul, das grandes cidades, do campo, de muitas, muitas? durante muito tempo, já terá chegado à mesma conclusão que eu, saberá do que estou a falar.
Eu só cheguei a essa conclusão este ano, na minha escola actual, uma Básica e Secundária do interior Norte do país, uma verdadeira escola modelo dessas que não existem. Fica literalmente no cimo de um monte, por trás das árvores. No início, pensei que, estando no sítio em que está, seria impossível que não fizesse a diferença. Mas não. Puro engano. Tem tudo o que muitas outras têm. Bem podia nem lá estar.
De facto, não lhe falta nada. Os alunos, salvo raras excepções, são todos muito fraquinhos, as primeiras avaliações confirmam-no imediatamente. Essas avaliações iniciais fazem lembrar a ?Sorte de Varas? do toureio à espanhola. Os alunos não mais irão conseguir ?levantar a cabeça?, se é que ainda vinham a pensar nisso. Quanto aos professores, tal como acontece noutros sítios, queixam-se muito de que são vítimas de um contexto ?difícil? que os ultrapassa. A maior parte não perspectiva, de todo, as suas próprias limitações. Não serão eles professores? Os alunos não conseguem superar as suas (incríveis) limitações. E eles? Conseguem? A resposta é: não. Mas, lá está, a culpa é da situação, é do meio desfavorável de onde provêm os alunos. Afinal, não são só os alunos, também os professores são vítimas.
Foi então que percebi. O estatuto de vítima encerra inesperadas vantagens. A mais imediata é a que resulta de olhar para o lado e perceber que se está acompanhado, que se pertence à maioria. É agradável, a sensação de integração. Depois, ser vítima, como identidade, como qualquer coisa que se é realmente, pode muito bem preencher a terrível sensação de vazio que acompanha, normalmente, a humilhação do fracasso. Finalmente, confere o direito a um tratamento especial, à simpatia e à condescendência com que se tratam normalmente as vítimas. A mais profunda consequência, infelizmente, é a clara opção pela mendicidade que esse estatuto favorece, sobretudo nos alunos.
Acontece que, no final do ano (na minha escola, como em muitas outras), tudo acaba em bem. Os professores envolvem-se numa patusca operação de salvamento, em massa, dos pobres dos seus alunos. Num ímpeto de fervor democrático, de compaixão e de amor pelo próximo, votam a subida das classificações o mais que podem. Dão-lhes, por caridade, qualquer coisinha. Fazem nessa altura aquilo que só se justificaria que fizessem mais cedo. No momento em que finalmente o fazem, já não faz qualquer sentido (pedagógico, pelo menos). Já não significa então mais do que a mera passagem administrativa.
Os alunos, claro, com o tempo aprendem a abdicar completamente do controlo do que lhes pode acontecer. A ?caridade? de que se habituaram a depender leva-os a optar por renunciar, parcialmente, à responsabilidade pela sua própria progressão. Não há nada que possam fazer. Nem querem. O seu futuro, na escola, depende da ?boa vontade? dos ?stôres?. Curiosamente, quando os professores finalmente os salvam de uma reprovação mais do que óbvia, alguns ingratos nem sequer agradecem, pedem logo mais. Talvez esses sejam aqueles que percebem que os seus benfeitores lhes tiram bastante mais do que o que dão.
É que ajudar pessoas a manterem de si próprios a imagem de pedintes, ainda que seja confortável, ainda que os liberte da maçada de terem que aprender coisas, rouba-lhes (no mínimo) um dos direitos humanos fundamentais: o direito à dignidade, o direito de se sentirem responsáveis pelo seu próprio destino.
Mas quem melhor do que nós, portugueses, sabe viver nesse estado? É a nossa sina. Sentimo-nos muito bem assim. Um medo de longa duração faz-nos procurar compulsivamente todas as saídas de emergência, todas as palavras mágicas, tudo o que nos possa libertar da nossa ?hora da verdade?, da nossa vez de "ir a jogo". Nós, portugueses, passamos. Passamos sempre (mesmo no futebol!). É uma predisposição arcaica, toda a gente sabe, mas vem dos avós, está-nos no sangue.
Quem passa por uma escola portuguesa, passa como quem não passa, porque deverá sair de lá "português". Eis tudo! Agora, entendo porque é que alguns senhores doutores teimam tanto em afirmar que aquilo que seria bom para a Escola portuguesa, para a nossa Escola, era ela um dia poder vir a ser sueca, ou checa ou, parece que já não seria nada mau, francesa.
Boa ideia. Bem visto.


  
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

Carlos Vasconcelos Lopes
Professor, Braga
Carlos Vasconcelos Lopes
Professor, Braga

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