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Shopping centers e governamentalidade neoliberal

A PROGRAMAÇÃO DE EVENTOS CONSIDERADOS CULTURAIS SE INTENSIFICA AINDA MAIS EM DATAS COMEMORATIVAS ? COMO O NATAL, POR EXEMPLO (?) ESSAS DATAS, ALÉM DE SERVIREM COMO RITUAIS ORGANIZADORES DA VIDA SOCIAL, ACABAM POR JUSTIFICAR MORALMENTE OS GASTOS OPERADOS PELO CONSUMO.

Às vésperas do Natal, parece-me bastante interessante pensarmos o quanto há de educativo em certas práticas contemporâneas organizadas em torno de datas comemorativas. Seguindo (e ao mesmo tempo ajudando a produzir) a lógica neoliberal, em que as formas de governamento são dissolvidas e pulverizadas em muitos e diferentes espaços sociais, a contemporaneidade tem se caracterizado por colocar em operação o que alguns autores chamam de ?pedagogias culturais?, possibilitando a realização de atividades educacionais para além dos muros escolares.
Este parece ser o caso de uma instituição contemporânea que tem granjeado uma posição de destaque nas formas atuais de organização comercial: o «shopping center». Por se tratar de um ambiente que proporciona proteção climática, relativa segurança, estética agradável e conforto aos seus freqüentadores, a idéia é a de que o «shopping center» contribui para a melhoria da qualidade de vida das populações urbanas e para aumentar a produtividade do comércio. De forma geral, entende-se que o objetivo principal da maioria dos «shopping centers» é a venda de mercadorias. Como atrativo para o consumo e como garantia de permanência prolongada dos consumidores dentro do «shopping», organizam-se áreas e atividades de lazer e entretenimento, na tentativa de aliar o comércio a atividades tidas como culturais, criando, assim, um novo espaço social em que a ?cultura? estaria a serviço da função prioritariamente comercial, por ser vista como um complemento ao esforço promocional de um «shopping».
É possível percebermos que a programação de eventos considerados culturais se intensifica ainda mais em datas comemorativas ? como o Natal, por exemplo. De acordo com Canclini (1996), essas datas, além de servirem como rituais organizadores da vida social, acabam por justificar moralmente os gastos operados pelo consumo. Dessa forma, valendo-se de atividades tidas como culturais e chamando as pessoas a interagirem, participarem, opinarem, o «shopping» opera com um processo de sedução, que se apresenta, na atualidade, como uma arte muito mais sutil de regular o comportamento das pessoas. Para Lipovetsky (1983), a «sociedade da sedução» é uma sociedade de serviços, que, ao ampliar a sensação de liberdade do consumidor, torna possível uma progressiva redução de relações autoritárias e dá lugar à diversidade: de opções, opiniões, escolhas, caminhos, direções, ofertas. A inflexibilidade, a rigidez e a solidez da estrutura disciplinar moderna acabam diluindo-se e pulverizando-se em relações mais ?transparentes?, abertas, maleáveis, suaves, num atraente e instigante jogo de sedução. Utilizando-se da sedução como uma estratégia mediadora do consumo, o «shopping center» transforma-se num ambiente cultural carregado de determinadas formas subjetivas de viver, de compartilhar experiências, de ensinar, de aprender e, enfim, de culturalmente pedagogizar os grupos freqüentadores deste local. Trata-se de um espaço contemporâneo de produção social que expressa, através de diversos mecanismos de sua organização e de seu funcionamento, determinados valores, regras, normas e códigos pelos quais seus freqüentadores interiorizam certos modos de agir, fazendo com que passem a aceitar naturalmente determinadas formas de ser, de vestir, de estar, de gastar, de se comportar, etc.
Nesse sentido, o shopping center é também um espaço educativo, na medida em que nos ensina muito eficientemente a sermos consumidores. Uma das muitas instituições contemporâneas que nos educa para agirmos como sujeitos-clientes que saibam participar de uma sociedade organizada em torno da lógica empresarial, a partir da qual até mesmo os Estados, frente ao desenvolvimento tecnológico e à globalização, passam a ser administrados. É dessa forma que, como um dos muitos cenários contemporâneos do consumo, o shopping center constitui-se num lugar em que nossos desejos são, ao mesmo tempo, produzidos e ilusoriamente satisfeitos. Transformação dos desejos em demandas que estão em sintonia com um mundo em que a tarefa da satisfação e da felicidade foi deslocada da sociedade para o indivíduo, ou seja, ela foi privatizada. A contemporaneidade (e o «shopping center» enquanto uma instituição contemporânea) parece acentuar a fabricação de um certo tipo de sujeito ? sujeito privado, sujeito privatizado, sujeito cliente ? que vem sendo produzido por um mundo cuja direção está, cada vez mais, sendo cedida aos mercados globais de massa, acelerando os tempos de giro do capital e, consequentemente, acelerando o ritmo do consumo: consumo de bens (cada vez mais instantâneos e descartáveis) e consumo de serviços (cada vez mais volátil e efêmero).
Além disso, em consonância com a maioria das formas de organização do mundo ocidental, a instituição «shopping center» promove significativas alterações nos modos como percebemos e experimentamos os espaços e os tempos. As novas tecnologias e o «marketing» servem como poderosos dispositivos estimuladores e reguladores do consumo, permitindo que os «shopping centers» também passem a agenciar determinados processos globalizadores que têm transformado as formas racionais de ordenação da vida social. Trata-se de um processo de educação que nos ensina a sermos sujeitos-clientes enquadrados num determinado código de conduta/comportamento considerado como ?o normal? e como ?o mais adequado? para que se possa partilhar das experiências oferecidas pelo «shopping » e, mais ainda, para que se possa viver no mundo contemporâneo.

Referências bibliográficas:

  • CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.
  • LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. Lisboa: Antropos, 1983. 

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

Karyne Dias Coutinho
Univ. Luterana do Brasil (ULBRA), Canoas, RS, Brasil
Karyne Dias Coutinho
Univ. Luterana do Brasil (ULBRA), Canoas, RS, Brasil

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