Página  >  Edições  >  N.º 129  >  A «abordagem por competências»: revolução ou mais um equívoco dos movimentos reformadores? (IV)

A «abordagem por competências»: revolução ou mais um equívoco dos movimentos reformadores? (IV)

É PRECISAMENTE ESTE CARÁCTER HEGEMÓNICO QUE O TÓPICO DAS COMPETÊNCIAS TEM VINDO A ASSUMIR NO PLANO DAS POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO E, SOBRETUDO, NO CAMPO DA TEORIA DO CURRÍCULO QUE GOSTARIA DE EVIDENCIAR.

O tópico das competências, como tentei evidenciar em participações anteriores, dado os modos como tem sido utilizado por muitos dos que se têm deixado seduzir por ele, utilização essa que vai desde as tentativas tendentes à sua definição unívoca (à boa maneira do one best way) até à sua institucionalização, passando pelas razões invocadas para o legitimar, parece permitir que o consideremos sobretudo como um tópico marcadamente ideológico, sendo nesse plano que teremos de jogar sejam quais forem as perspectivas que sobre ele tivermos. Se esta convicção possuir algum valor, isto é, se se revelar como próxima das realidades com que nos temos de defrontar actualmente nas sociedades em que vivemos, tal não significa que a tarefa esteja mais simplificada. Pelo contrário, significaria dificuldades acrescidas, pois teríamos de nos opor a um conjunto fortíssimo de evidências de senso comum impregnadas de outras tantas legitimadas por crescentes sectores da chamada comunidade científica que não se têm poupado a esforços no sentido de transformar aquele tópico num conceito com carácter hegemónico.
É precisamente este carácter hegemónico que o tópico das competências tem vindo a assumir no plano das políticas de educação e, sobretudo, no campo da teoria do currículo que gostaria de evidenciar. Ele surge-nos como tutelar de conceitos tais como «conhecimento» e «saber», pretendendo integrá-los. O mesmo sucede com o de «objectivo», claramente em declínio após cerca de quatro décadas de reinado infrutífero, após o que foi considerado por G. Malglaive como um domínio onde sempre se fez notar uma ?terrível ausência de teoria?. A noção de qualificação surge-nos também em clara perda, quase que desaparecendo nos discursos oficiais. Por último, é a própria vida que passa a ser tutelada, dado que teremos permanentemente de provar aos outros e a nós próprios que somos competentes, contra tudo e contra todos, ou não fosse este um dos significados da palavra competência, como Licínio Lima justamente evidenciou numa conferência realizada recentemente na Corunha e cujo texto se encontra em fase de publicação (a este propósito, cf. Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa).
E este é o último aspecto que pretendo evidenciar aqui, reforçando o que já havia sinalizado em textos anteriores: a centração exclusiva nos sujeitos individualmente considerados, raramente emergindo os colectivos e as organizações como sujeitos explícitos. No mundo e na época em que vivemos esta questão assume particular relevância, dado que assistimos a uma clara tendência para desresponsabilizar as instituições e as organizações pelos efeitos da acção que desenvolvem (a começar pelo Estado) e a responsabilizar individualmente os sujeitos pela situação em que encontram, seja ela de abastança, ainda que efémera, ou de pauperização. Assim, o aprofundamento das desigualdades, o desemprego galopante (mesmo daqueles que possuem qualificações superiores e para os quais a «mão invisível» parece não ter capacidade de resposta?), a segregação social e a diminuição da protecção social, por um lado, e o aumento e concentração da riqueza nas mãos de minorias cada vez mais restritas, por outro, seria o resultado da falta ou da detenção, conforme os casos, de competências dos indivíduos. Esta situação corresponde ao que Richard Sennett qualificou como as ?consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo? (Cf. A Corrosão do Carácter, 2001), onde podemos observar com muita clareza os efeitos desta auto-culpabilização dos sujeitos pela situação em que se encontram, traduzidos sobretudo na incapacidade manifesta em procurar saídas adequadas para a mesma dado o quadro geral de fragilização em que foram colocados.
Temo que o tópico das competências, pelo tempo e modos como emerge, tenha mais a ver com esta agenda marcadamente neo-liberal e neo-conservadora em que a hiper-valorização do individualismo surge como uma das suas principais imagens de marca, do que com preocupações humanistas de valorização das pessoas e do bem comum com que se revestem os discursos dos principais defensores da institucionalização da pedagogia das competências a partir da escola.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho
Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo