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Há muito tempo, no ponto de ônibus

«VOCÊS ACREDITAM QUE AQUILO QUE A TELEVISÃO MOSTROU ONTEM FOI MESMO O HOMEM CHEGANDO À LUA?? FOI NÃO. SE O HOMEM FOSSE À LUA, ONDE IRIA FICAR SÃO JORGE COM SEU CAVALO?»

Cada um de nós possui lembranças guardadas ao longo da vida. Lembranças que nos provocam constantemente e nos constituem enquanto sujeitos.
Recordo-me do dia 20 de julho de 1969, quando milhões de espectadores no mundo inteiro assistiram aos três astronautas americanos, que saíam da nave Apolo 11 e desembarcavam na Lua, onde fincaram a bandeira dos Estados Unidos. Recordo-me, também, quando, no dia seguinte, ainda envolvida por uma sensação de encantamento pelo que vira, conversava com colegas professoras, aguardando o ônibus para retornarmos às nossas casas. Estávamos tão vibrantes com a novidade, tão entusiasmadas com os comentários que fazíamos, tão mergulhadas nas emoções que ecoavam do dia anterior e nos tomavam por inteiro, que não nos dávamos conta do que ocorria em nosso entorno. Não sei há quanto tempo aquela mulher estava ali ou mesmo se nos observava. Sei apenas que, num dado momento, ela marcou sua presença. Lentamente, de forma a princípio oscilante, aproximou-se de nós. Sua face retratava um certo pedido de desculpas por tentar interromper a conversa de um grupo desconhecido, mas, ao mesmo tempo, continha uma determinação própria daqueles que têm algo muito importante e inadiável a dizer. Sua voz revelava altivez e firmeza quando nos perguntou: «Vocês acreditaram que aquilo que a televisão mostrou ontem foi mesmo o homem chegando à Lua?... Foi não. Se o homem fosse à Lua, onde iria ficar São Jorge com seu cavalo?»
Essa colocação me marcou profundamente. Buscando entender a surpresa ou mesmo o espanto que nos assaltou na ocasião, percebo que inúmeras «redes de subjetividades,» características dos sujeitos reunidos naquele ponto de ônibus, se encontraram/mesclaram naquele momento.
Revisitando a cena, observo o quanto aprendi com aquela mulher. Sua fala impulsionou-me a refletir sobre a desconfiança, o questionamento do receptor em relação à mídia, a complexidade que envolve o processo receptivo em uma época em que sequer sabia nomear tal processo. Sem dúvida, aquele encontro instigante foi fundamental para que eu me interessasse por pesquisar TV.
Sempre aprendemos em contextos não escolares. A Sociologia da Educação, há muito, nos alerta para esse fato. Talvez agora, instigados pelos murmúrios do cotidiano escolar, estejamos mais atentos a outros espaçostempos nos quais nossa vida e a de nossos alunos são incessantemente criada e recriada. Espaçostempos cada vez mais numerosos e diversificados. Espaçostempos que se tecem e destecem em tramas, levando-nos a questionar a idéia de uma separação entre o que se apresenta no interior da escola e aquilo que se apresenta em seu exterior. Espaçostempos que nos intimam a investigar, aceitando o convite/desafio proposto por Nilda Alves, como estão na escola os tantos conhecimentos trançados nas múltiplas redes de que os diversos sujeitos participam, dentro e fora da escola. Muitas vezes, em um ponto de ônibus.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

Geni Amélia Nader Vasconcelos
Univ. do Estado do Rio de Janeiro. Grupo de Pesquisa Redes de Saberes em Educação e Comunicação
Geni Amélia Nader Vasconcelos
Univ. do Estado do Rio de Janeiro. Grupo de Pesquisa Redes de Saberes em Educação e Comunicação

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