Professor Adjunto da ESE de Portalegre e Coordenador do Projecto das Escolas Rurais do Nordeste Alentejano
Em pleno debate sobre o polémico reagrupamento da rede escolar em Portugal - em que uma das principais medidas passará pelo encerramento de inúmeras escolas em meio rural - conversamos com um dos investigadores que mais de perto tem seguido esta questão e que acompanhou de perto a evolução de projectos integrados em escolas do 1º ciclo do meio rural. É ele Abílio Amiguinho, Professor Adjunto na ESE de Portalegre, docente do Departamento de Ciências da Educação e Coordenador do Projecto das Escolas Rurais do Nordeste Alentejano.
Perante a actual política de reagrupamento da rede escolar - que prevê, entre outras medidas, o encerramento das escolas de 1º ciclo com menos de dez alunos - em que situação ficam as escolas de meio rural?
Julgo que não se pode estabelecer uma relação tão linear entre as tipologias organizativas e aquilo que pode ou não vir a ser o futuro das escolas em meio rural. Isto, porque os exemplos que tendem a atender à sua especificidade tanto podem vir da parte de agrupamentos horizontais como de agrupamentos verticais. A questão de fundo não é essa. O que está em causa é a lógica subjacente a todo o processo, uma lógica de concentração que tende a ver os agrupamentos numa perspectiva de poupança, habitualmente escamoteada sob uma argumentação de cariz pedagógico e de racionalização dos recursos educativos, que tem vindo a acabar com os agrupamentos horizontais, e, pior do que isso, a desrespeitar as decisões tomadas pelas comunidades educativas ? pais, professores e autarquias. É nesta perspectiva que julgo que poderão resultar consequências negativas para a escola no seu todo e, em particular, para a escola em meio rural.
Há quem diga que este é um processo que não tem em conta as especificidades locais, partindo de um modelo centralizado e ?imposto? às comunidades. Concorda?
Precisamente. E a prova de que isso está a acontecer é que algumas soluções de tipologia organizativa ensaiadas nos últimos tempos, designadamente na região norte, discutidas até a nível autárquico, acabaram por ser apanhadas nesta voragem de concentração. As especificidades que estiveram na base desse tipo de propostas, algumas delas culminando em formas organizativas alternativas, como a Escola da Ponte, perderam-se completamente.
Porque razão terá o Ministério da Educação conduzido este processo de forma tão precipitada?
Julgo que há vários factores que, na minha opinião, concorrem para esta situação. Em primeiro lugar há uma questão que tem a ver com a preservação da lógica escolar mais tradicional. Ao cabo de todos estes anos de reformas o cerne da organização da escola e do modelo escolar permaneceu intocável. Aliás, na minha opinião, as reformas são mesmo conservadoras em relação à manutenção de um conjunto de critérios historicamente afirmados e consolidados relativos à forma de organização das escolas. Sucede que, desse ponto de vista, em meio rural esse modo de organização não pode ser respeitado por questões demográficas e sociais, porque os alunos são poucos e a organização que começa pela classe, que tem aí o seu sentido mais pedagógico, não tem lugar. Em resumo, julgo que existe uma tentativa de recuperar e de conservar este tipo de modelo de organização. Por outro lado há questões de índole política. Para este governo ? embora nos anteriores esta tendência também estivesse estado patente ? há um modelo de organização escolar e uma tipologia de agrupamento consideradas ideais do ponto de vista da gestão de recursos, do currículo e da pedagogia, e essa tendência tem vindo a ser reforçada nos últimos tempos de uma forma muito clara. Se juntarmos a tudo isto a perspectiva economicista que domina a política do actual executivo ficamos com um quadro que justifica este tipo de intervenção no campo educativo. Extravasando esta questão para além do campo educativo, que consequências poderá este tipo de medidas ter no próprio meio em que se inserem as escolas de meio rural?
Na minha opinião, tem-se precisamente reduzido esta abordagem a uma mera reorganização da rede escolar, como se isso fosse única e exclusivamente um problema de rede escolar. E este não é apenas um problema de rede escolar mas também de organização e ordenamento do território, e quando se toca nesta questão não se faz ideia das suas implicações. Encerrar uma escola implica, em muitos casos, tocar a dimensão simbólica das comunidades. Para muitas delas, que não têm senão a escola como símbolo institucional, ela representa o último sinal da sua existência. E mais uma vez, também por esta via, as comunidades sentem o futuro ameaçado. Perante estas ameaças é natural que as pessoas resolvam deixar os seus lugares e partir para outros. Claro que não acredito ? tal como a maioria das pessoas que se dedica à questão das escolas em meio rural ? que exista uma relação linear entre o fecho de uma escola e o desaparecimento de uma aldeia. De qualquer modo, quando se fecha uma escola dá-se mais um sinal de marginalização dessas comunidades, é algo mais que se lhes retira e isso pesa na forma como elas olham o seu futuro.
Tendo em conta a crescente desertificação que vai atingindo o Alentejo, qual é o panorama na região?
A situação do Alentejo é muita diversa. No distrito de Portalegre, onde nos encontramos, situado no nordeste alentejano, havia no ano passado cerca de 35 escolas com menos de dez alunos. Se olharmos para o Baixo Alentejo - nomeadamente para o concelho de Odemira - o número de escolas nessa situação é muito maior. Mas estamos mais uma vez de volta dos números, das variáveis de natureza quantitativa, e o que faria sentido, e isso os governos e as políticas educativas não contemplam, é olhar para o ?entrosamento? da escola ? utilizando uma expressão de um autarca aqui da região - com as suas comunidades. Se calhar não se olha para o modo como essas escolas promovem a formação e a educação das crianças, as socializam, e, simultaneamente, promovem as próprias comunidades, na medida em que essa intervenção pedagógica está intimamente associada a uma intervenção comunitária.
O professor Yves Jean, da Universidade de Tours ? também ele um investigador desta matéria - tem uma expressão curiosa que resume, de certa maneira, o que está a referir. Ele diz que ?a escola e a aldeia são o meio onde a criança e o adulto constroem a sua identidade?.
Precisamente, e ele sublinha essa congregação com uma ideia mais abrangente: a de que a escola, neste contexto ? aliando a intervenção pedagógica e a intervenção comunitária ? pode contribuir para a construção de uma nova ruralidade. Isto, para muita gente, é algo de verdadeiramente utópico, justamente porque quando se olha para as escolas de meio rural de uma perspectiva ?negativa? isto não faz sentido, porque ela é sinónimo de fragilidade de recursos, de instalações deficitárias, etc... Mas esquecemo-nos que este desfavor e estas circunstâncias são contrariadas pelas populações locais, pelas juntas de freguesia, pelas câmaras municipais, que acreditam que a escola pode contribuir para a construção de uma nova ruralidade. E aí sim, torna-se indispensável conservar a escola para a transformar - repare que eu não digo que é necessário manter a escola, transformando-a numa espécie de museu, digo que é necessário manter a escola para a transformar, ligando-a ao meio e à comunidade, não fazendo dela um mero recurso pedagógico mas ajudando-a a resolver os seus próprios problemas, a torná-la visível no exterior. Concorda, portanto, que o actual modelo de escola em meio rural está esgotado?
O modelo tradicional de escola está esgotado no meio rural como está esgotado em meio urbano. E ainda bem que me coloca essa questão, já que, neste momento, a escola em meio rural, justamente porque pode disfrutar de um conjunto de condições favoráveis, nomeadamente pela proximidade com as pessoas ? como refere também o Yves Jean -, pelo facto de ter poucos alunos e, sobretudo, por ter poucos alunos de diferentes níveis etários e níveis de escolaridade, permite, a partir desta heterogeneidade, produzir práticas novas do ponto de vista da aprendizagem e da formação das crianças. Nesta medida, ela pode funcionar como uma espécie de laboratório onde as escolas do meio urbano também teriam a aprender. Quando se diz que é necessário encerrar as escolas em meio rural porque não proporcionam condições de aprendizagem aos alunos, dá-se a imagem de que a crise atinge apenas o meio rural. Mas qual será a escola que está mais em crise: a do meio rural ou a do meio urbano? Sobretudo se se tiver em conta que nas grandes aglomerações e nos grandes agrupamentos, como aqueles que se está a pretender constituir, ela é um poderoso mecanismo de ?produção de infelicidade?, como refere o José Alberto Correia, da Universidade do Porto.
Ou seja, está a dizer a escola em meio rural pode não apenas ser sinónimo do desenvolvimento local como também de instrumento de renovação pedagógica?
Exactamente. É possível que em meio rural se esteja hoje a construir soluções para muitos dos problemas que a escola, em geral, sofre. Repare que é frequente referir-se a ideia de que os pais não vão à escola e que poucos se preocuparem com a educação dos filhos ? o que eu não acredito, porque os pais preocupam-se sempre com a educação dos filhos -, mas o que é facto é que há uma interacção pouco relevante. Em meio rural as pessoas apercebem-se do valor que a escola tem para a aldeia, não só participam mais enquanto encarregados de educação mas também como cidadãos, porque percebem nela um factor de identidade que, por sua vez, se pode transformar em estrutura de promoção da própria comunidade.
E no contexto europeu? Qual é a situação das escolas em meio rural?
A realidade europeia é muito diversa. De qualquer modo, no meio das ambiguidades e das contradições que se vão vivendo, há hoje países onde se começa a encarar com outros olhos o valor da escola rural, nomeadamente na perspectiva de ela poder contribuir para um ordenamento do território, enquanto equipamentos sociais e colectivos que podem servir para estancar o êxodo do meio rural, ou mesmo ? como no caso da França - atrair pessoas para esse meio. A Universidade francesa de Grenoble, por exemplo, tem realizado uma série de estudos a este respeito e descobre que, apesar de não se poder falar de um retorno massivo ao campo, há um sector significativo da população urbana ou semi-urbana que, face à degradação de vida nesses meios, prefere tentar uma nova vida no campo. O exemplo mais recente e com sinais mais positivos a este respeito vem do Canadá, (embora já do outro lado do Atlântico) mais concretamente do território francófono, onde existe uma política de reabilitação da escola em meio rural, traduzida, inclusivamente, em apoios financeiros. Mais do que tudo o resto, há subjacente a esta política uma questão de civilização, porque as aldeias fazem, de facto, parte da nossa civilização. As populações que no período de difusão da escola - finais do século XIX e princípio do século XX - reagiram mal a uma instituição que consideraram agressiva, foram-na adoptando como algo de seu e transformaram-na, em muitos casos, num elemento estratégico da sua sobrevivência e do seu desenvolvimento. A este propósito, considero significativa a afirmação de um idoso que entrevistamos no âmbito de um documentário sobre o movimento das escolas rurais em Portugal, realizado em Novembro do ano passado: ?Não podemos fechar a escola porque ela é o principal de um povo?. Julgo que tudo aquilo que acabei de dizer a este respeito ficará bem expresso neste comentário. E este idoso di-lo porque teve oportunidade de participar em projectos onde interage com a escola, que faz muito do seu trabalho a partir dos saberes da população local que, como é óbvio, estão depositados nos mais velhos.
A Escola Superior de Educação de Portalegre tem desenvolvido alguns projectos neste campo. Pode revelar-nos um pouco mais acerca deles?
Sim. A ESE de Portalegre tem, aliás, alguma tradição em termos de intervenção em escolas de meio rural. Uma tradição que remonta a meados dos anos oitenta com o projecto ECO, desenvolvido no concelho de Arronches. Conforme o nome sugere, este projecto tinha como objectivo a ligação da escola à comunidade, visando transformar as práticas pedagógicas como forma de inverter a incidência significativa de insucesso escolar no concelho. Porém, rapidamente se percebeu que para proporcionar as condições de sucesso educativo às crianças faria todo o sentido fazer recair a intervenção sobre a própria comunidade. Não se pode apenas abrir a escola à comunidade no sentido de ela constituir um mero recurso pedagógico, mas ao mesmo tempo que se muda a escola tentar também mudar a comunidade. Essa foi a primeira experiência. Depois disso, a partir de 1992, a ESE de Portalegre, associada ao Instituto das Comunidades Educativas, desenvolveu localmente uma série de intervenções no âmbito do projecto Escolas Rurais. Começamos na altura no concelho de Monforte, com três escolas, e depois fomos alargando a iniciativa ao concelho de Arronches, Nisa, Campo Maior e Portalegre. Actualmente, a nossa acção dissemina-se por estes concelhos. Como se concretiza em termos práticos essa intervenção?
O projecto chama-se Projecto das Escolas Rurais - Obstáculo a Recurso, mas quando surgiu designava-se Projecto das Escolas Isoladas. Tem o subtítulo ?Obstáculo a Recurso? porque a condição de isolamento em que se encontravam essas escolas impedia-as de desenvolverem uma série de actividades, como associar professores para articular projectos comuns ou juntar as crianças de forma a promover as aprendizagens e estimular a convivência lúdica, partindo da convicção de que não é apenas a escola a sofrer de isolamento mas a comunidade no seu todo. Nesta estratégia pedagógica e comunitária de quebra do isolamento, transformando os obstáculos em recursos, era fundamental que a intervenção passasse igualmente pela comunidade. Foi a partir desta perspectiva que se começou a desenvolver a ideia de a escola ser um pólo de desenvolvimento e animação comunitário crescente. Isto implicava que houvesse uma equipa da ESE que acompanhasse as escolas, ajudasse os professores a conceber e a desenvolver projectos, a programar actividades em conjunto, a promover trabalho de formação, quer de natureza formal quer, por vezes, de natureza um pouco mais informal, proporcionando oportunidades para os professores comunicarem as suas experiências. Olhando este projecto hoje, a dez anos de distância, o que me parece mais interessante, e que representa, na minha opinião, um forte contributo para repensar a escola de uma forma global, e mais particularmente, a escola em meio rural, foi que, apesar do objectivo inicial da intervenção ser de índole pedagógica, ele acabou por se transformar num projecto de intervenção social no sentido mais abrangente do termo.
Houve algum resultado prático desse trabalho que gostasse de destacar? Um dos exemplos que considero mais interessantes é o que envolve as três aldeias que integraram o primeiro núcleo do Projecto de Escolas Rurais, que se aperceberam, de forma prática, da necessidade de um carteiro que servisse as localidades. Nos encontros que foram realizando ao longo do projecto as comunidades foram aprofundando o diagnóstico desta situação, designadamente pelo facto de as crianças enviarem cartas de umas escolas para as outras que não chegavam ao destino. Partindo deste facto, criou-se um projecto que, envolvendo a escola e as três comunidades, partiu à ?procura? do carteiro. E o facto é que ele acabou por ser encontrado... Ou seja, neste caso a intervenção pedagógica rapidamente revelou um problema comunitário que, por sua vez - e embora de curta duração -, se transformou num projecto mais abrangente. E na tentativa de resolução deste problema geraram-se oportunidades de formação para as crianças, para os idosos - os que mais activamente participam nas actividades -, e para a população no seu todo. Este exemplo teve mais tarde efeitos em outras escolas, já que, funcionando em rede, os projectos vão ?contagiando? outros estabelecimentos de ensino. Assim, dois anos depois, em Ouguela, em Campo Maior, um professor, em associação com os idosos da aldeia, transformaram uma das duas salas de aula da escola num centro comunitário, dotado de um pequeno centro de dia e de um espaço que era também aproveitado pelos mais jovens para outras actividades. A seguir vieram outros serviços de apoio que, progressivamente, foram mostrando às populações locais que pôr a escola ao serviço da comunidade não é mera retórica, porque a escola que se preservou para se transformar pode produzir este tipo de efeitos.
Qual é a actual situação e como antevê o futuro próximo deste projecto? Nós gostaríamos muito de continuar com o trabalho que temos vindo a realizar, mas no actual contexto de ameaças que vivemos - das quais falamos no início desta entrevista ? não sei qual poderá vir a ser o desfecho. De qualquer forma, gostaria de sublinhar que quando os órgãos de comunicação social nos contactam fazem-no porque nos identificam com aqueles que defendem as escolas com menos de onze alunos que o governo quer fechar. Mas não: nós trabalhamos com escolas de meio rural - que designamos por pequenas estruturas escolares em meio rural - de um e de dois lugares, que, em princípio, não serão para já encerradas, mas que necessitam de ser transformadas na lógica daquela filosofia de intervenção que tenho vindo a defender. No entanto, se a escola de Ouguela ? para dar um exemplo que me é próximo -, este ano com cinco alunos, encerrar, mata-se um projecto de longa duração, já com dez anos, onde as crianças estão em contínuo contacto com os idosos, aprendendo mutuamente, funcionando praticamente em regime de centro comunitário? Nas escolas em que nos envolvemos a maioria tem dois lugares e muitas delas têm mais de onze alunos. E para este ano, procurando vincar a importância da escola em meio rural, queremos aprofundar o propósito de intervenção comunitária, nomeadamente procurando continuar a promover a criação de serviços comunitários e, porventura, transformar a própria aldeia num serviço de natureza educativa.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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