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Quem me dera ser criança, e perdoar...

Para a Sua Excelência, o Presidente Allende.

ESTE MEU TÍTULO NÃO É BRINCADEIRA. REFERE FACTOS QUE ACONTECERAM, FAZ JÁ, 30 ANOS E QUE NÃO CONSIGO ESQUECER E PERDOAR. FACTOS QUE MATARAM UMA AUTORIDADE ELEITA PELO POVO, PARA O POVO E DO POVO.

Não é brincadeira também, esse belo título com o qual Eduardo Sá abre o seu livro sobre a infância: A vida não se aprende nos livros, editado pelo jornal Público na sua colecção Xis, menos brincadeira é ainda, o capítulo de abertura: ?O importante é estar contigo?, no qual destaca os educadores da classe operária, os bebés. Ou, quando Melanie Klein, no seu texto de 1945, reproduzido em 1994 como volume II das suas Obras, página 37 e seguintes, analisa o respeito e admiração que uma criança tem pelo seu pai, quando o vê qual capitão a comandar o seu barco que mais não é, que a sua mãe. Melanie Klein, como se sabe, defendia o facto da criança ser perseguidora dos que lhe fazem mal, quer a si, quer às pessoas que ama: temperamento forte para si própria, mas vista como dura, punitiva, para o mundo, excepto se... perdoa. A criança sente capacidades omnipotentes, ao sentir que nada lhe é impossível, especialmente punir e castigar. Não é em vão, também, o texto Childhood and Society de Erick Erikson, refere que a criança tem autoconfiança, apesar da luta permanente que mantêm consigo, entre confiar e desconfiar, premiar e punir, sentimentos retirados pelos mais novos, das religiões que os seus adultos praticam. Erickson, na página 229 do referido livro de 63, explicita a mais valia que a criança aprende quando se debate entre iniciativas pessoais e a culpa dessa dinâmica, que, segundo o autor, diminui no sentido inverso do crescimento, ao se encaixarem, corpo e ideias, dentro da mesma cronologia, ao se juntarem ideias e anos vividos, que formam o futuro adulto. Eis que a criança sabe a quem perdoa e de quem foge, em pessoa ou em pensamento, como Alice Miller analisa nos seus textos, especialmente sobre Hitler, cuja puberdade passou a ser de ódio ao social, levando-o a matar milhares. Tal qual fez esse nativo Picunche, no Chile, de nome Augusto ? qual Imperador, César, Poder Centralizado, Omnipotente... ? conquistador e assassino dos seus amigos e inimigos, tal como a História e o Direito Internacional têm provado. Tal como Hitler ? esse austríaco abandonado pelo pai judeu e criado sem recursos pela mãe ? o referido Picunche, foi aceite na base de uma mal entendida caridade dos Padres dos Sagrados Corações ? a escola da oligarquia chilena ? sítio no qual aprendeu a odiar os mais poderosos que tudo tinham. Como Hitler, o Picunche não podia perdoar aos seus colegas as posses das quais ele carecia. Donde, no poder, matou, mentiu, enganou, seduziu, tentou conquistar o impossível, a adesão à sua pessoa. Essa adesão que teve o Presidente Allende. Esse carisma singular do Presidente, e a sua ideia de justiça distributiva, a quem o Picunche jurou lealdade mas que acabou por matar e, como a ele, a seus seguidores. Tantos, que a História não tem dedos para contar. Milhares, que o Holocausto até parece ficar diminuído quando comparado aos feitos referenciados. Tantas famílias ficaram separadas, espalhadas por esse mundo; mulheres que não puderam enterrar os seus mortos, por falta de cadáver, filhos para quem os desaparecidos são os seus heróis ? péssima ideia no crescimento da criança. Essa criança cresce no ódio. Como muitos de nós. Como perdoar aos Senadores de há trinta anos, que planificaram a morte do Presidente Constitucional e de milhares? Que não sabiam, que não imaginavam? Então, seus pretensos sabidos, e a História, não conheciam? Que as mortes eram justificadas, porque seria apenas um mês de perseguições para se libertarem da aventura socialista. Que sabem eles do que é a justiça da igualdade, esse único direito que a Revolução Francesa consagrou e nunca foi capaz de cumprir, por viver à Hobsbawm, na Era do Capital? Esse direito nascido nos hoje EUA, na sua Constituição, usada para entrar no empobrecido Burundi, no mísero Afeganistão, para apagar as esperanças dos povos da América Latina, para escarafunchar, com dados muito bem organizados, no Iraque, ou proclamar a guerra ao terrorismo semeado por quem tem o poder económico e dos armamentos, da dita Lei Internacional, Tribunais de Direitos Humanos, que se funcionassem, teriam mais Milosevic do que há hoje. Porquê o prémio Nobel da Paz, ao organizador da chacina do Chile, esse Kissinger, cuja religião israelita manda matar, tal qual o seu povo faz com os Palestinianos? Como vou poder abraçar essa minha família, sentada na cadeira do fascismo? Como vamos poder voltar a um País ainda dividido pela imagem carismática, nítida, transparente, de um social-democrata que tencionou, como Babeuff em 1789, elevar o povo à dignidade da igualdade, luta que o levara à guilhotina em 1795, como Sua Excelência, foi levado às balas em 1973? E essas palavras que matam, quando, ainda hoje, neste aniversário, a maioria do Congresso não quer honrar o Presidente Constitucional morto pela traição das Forças Armadas, ao colocar uma placa no lugar da sua morte? Quem me dera ser criança, para saber debater-me entre esta vida em território alheio e a minha natural inclinação de ser, outra vez, chileno? Quais os meus Direitos, quais as prerrogativas de todos nós, ao vivermos em permanente Êxodo? Quem me dera ser criança, para punir os arrebatadores de ilusões e de emotividades, os separadores de famílias, os que causaram esta nossa tristeza depressiva de não se ser entendido em sítio nenhum, quer pela pronúncia, quer pelas ideias. Porque, ao regressar de uma visita de trabalho de campo no Chile Picunche, na minha cabeça aparecia a ideia de um livro: Chileno exilado no Chile. Haja uma divindade que permita ao desleal Picunche e aos seus apoiantes, viver muitos anos, até sentir o peso da solidão e da vida em culturas que não são as suas! Haja uma divindade que me permita apedrejar com ideias, até convencer os fascistas, do mal feito à Nação. Como em Portugal, um cravo por cima do País, para que esta curta vida seja sã e serena. Senhores Pais, aqui ficam os factos teóricos e históricos para ensinar às crianças que o 11 de Setembro não é as Torres Gémeas, mas sim o dia da memória de um povo arrasado.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 127
Ano 12, Outubro 2003

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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