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Quando o ?entranho? é o outro...*

...tudo bem, mas quando o entranho sou eu... a coisa se complica...
Paulo Sgarbi.

Cartaz ABIA.

Em maio de 2003, participei, no Rio de Janeiro, de um curso/capacitação ?Homossexualidades, opressão social e respostas comunitárias?, que reuniu pessoas de instituições e ONGs ? associadas ou não a grupos de homossexuais que trabalham na prevenção das DST/ HIV-AIDS em todo Brasil.
Meu primeiro contato para a inscrição foi por e-mail, onde literalmente escrevi ?trabalho como psicóloga, mas atualmente estou desempregada, sou argentina, mulher e heterossexual, desejo participar do curso, é possível??, e foi possível...
Quando cheguei ao lugar do encontro e olhei para os que seriam meus companheiros, me reconheci como ?minoria? naquele contexto: MULHER HETEROSEXUAL. Essa condição me fazia ?estranha? neste contexto: Éramos uma companheira transgênero, uma lésbica e doze homens homossexuais...
O que me pareceu impactante nesta experiência de aprendizagem começou pela maneira como nosso coordenador(1) nos provocou, colocando de cara o problema das diferenças e da convivência com «outros»: nos solicitou que nos dividíssemos pela «identidade sexual», ou seja, aprofundou as diferenças de maneira que elas não desaparecessem para tornar o curso mais confortável (agrupar por interesses profissionais, lugares de residência, idade, etc.), de maneira que, a partir das nossas diferenças, pudéssemos negociar formas de conceber o mundo, de sentir a sexualidade, possibilidades de nos relacionarmos, conhecer, compreender... isso foi de tal impacto em mim embora já houvesse estudado, lido e conversado este tema recorrentemente com colegas e amigos, mas vivenciar «essa» diversidade e, sem negá-la, possibilitar algum tipo de encontro, que não converta os «outros» em ?conhecidos e menos temidos?, se não que aquele desconhecido e temido estivera aí para dar conta do seu cotidiano para além da minha compreensão; foi realmente desestabilizador.
Em outra atividade, tínhamos que dramatizar uma situação onde as pessoas se relacionavam em diferentes horas e lugares: meu grupo, composto de quatro pessoas, tinha que pensar essa relação às 3h da tarde numa rua da cidade: eu pensei, e disse: ? «Bom, às três da tarde, a gente que pode dorme a sesta ou toma sol, dependendo do calor, e os que não podem trabalham, caminham  pela rua, vivem  as ruas»... um dos meus companheiros disse: «às três da tarde alguém olha e sabe das ?pegações? que podem terminar em ?relacionamentos sexuais? em qualquer banheiro de uma lanchonete...» Desestabilizador, uma vez que me mostrava outro cotidiano que, mesmo que eu desconhecesse, existia...
Fora da escola, neste caso, dentro de organizações sociais que trabalham na prevenção da saúde de uma comunidade, pude puxar um fio daquilo que Boaventura Santos (1999)(2) nos trás dando conta daquelas redes de conhecimentos: ?Temos o direito de ser diferentes, quando a igualdade põe em risco a nossa identidade e temos que lutar por igualdade quando a diferença acarrete inferioridade?... estas diferenças postas sobre a mesa, clara e explicitamente nos permitiram conversar sobre nossas práticas, nossas atitudes e nossas possibilidades humanas de convivermos com «outros»...
OBSERVAÇÃO: as siglas HIV/AIDS não foram o centro da nossa conversa, elas circularam dentro da complexa rede que forma nossa humanidade.

* Tradução do espanhol por Valter Filé.
  1. Luis Felipe Rios (Assessor dos Projetos da ABIA).
  2. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente.. São Paulo : Cortez, 1999.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 127
Ano 12, Outubro 2003

Autoria:

Anelice Ribetto
Psicóloga (UNC- Argentina)
Mestre em educação (UFF- Brasil)
Anelice Ribetto
Psicóloga (UNC- Argentina)
Mestre em educação (UFF- Brasil)

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