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O teatro na educação das classes populares

A PRESSÃO PARA QUE O TEATRO SE DESVIE DA CONTRIBUIÇÃO ESPECÍFICA QUE TEM A DAR AO PROCESSO EDUCATIVO, SUBMETENDO-SE A EXIGÊNCIAS ESTRANHAS A SEU CAMPO ESPECÍFICO DE ACTUAÇÃO, É MARCANTE NO COTIDIANO ESCOLAR.

O dramaturgo alemão BERTOLT BRECHT alertava que não se deve transformar o teatro num ?mercado abastecedor? de moral. Ao se exigir do teatro algo mais do que uma emoção de prazer, não se consegue fazê-lo ascender a um plano superior. Apenas demonstra-se desprezo pela matéria específica com que ele opera.
Questões como essa permeiam, de uma forma ou de outra, a problemática do teatro desde seu nascimento. Brecht apenas as aguçou. Causa espanto, portanto, que ainda tenha que se travar essa discussão, quando se fala em teatro na escola, como se ainda estivéssemos há pelo menos dois mil anos atrás...
A pressão para que o teatro se desvie da contribuição específica que tem a dar ao processo educativo, submetendo-se a exigências estranhas a seu campo específico de atuação, é marcante no cotidiano escolar. O que chama a atenção, no entanto, é que essas exigências moralizantes são mais agudas quando se trata do teatro na educação das classes populares. Analisemos, pois, a natureza de algumas delas.
BAKHTIN aponta como o início do processo de desagregação do estilo rabelaisiano e das pujantes imagens grotescas da cultura cômica popular medieval, justamente sua subordinação a um conteúdo ?moral? abstrato. O valor desta afirmação é imenso para o entendimento de alguns aspectos da questão que estamos tratando. Com efeito, quando se faz teatro na escola apenas com o objetivo de ensinar ?boas maneiras?, ou algo parecido, aos alunos não se pode compará-los a outra coisa senão aos ?animais empalhados? a que Brecht se referia. Diferente é quando o teatro é colocado a serviço da livre expressão de sua alegria e sua inquietude. Quanta vida se pode ver ali! Afinal, qual é a diferença entre teatro e sermão com cenário e indumentária?
Exige-se, com freqüência, que o teatro cumpra o papel de fazer com que os alunos das classes populares passem a olhar com outros olhos a Escola. É pertinente perguntar, no entanto, se o teatro não poderia cumprir o papel inverso: fazer com que a Escola olhe esses alunos com outros olhos! Se considerarmos que a Escola ainda vê o conhecimento não como algo a ser continuamente desconstruído e reconstruído, mas como algo do qual temos que nos aproximar com reverência e cuidado para não macular, entenderemos porque o acesso das classes populares à Escola Pública, ocorrido nos últimos anos, tem sido encarado como um verdadeiro assalto dos bárbaros ao templo sagrado do saber. Ao teatro sobraria, pois, a função de ensinar a estes ?bárbaros? como se aproximar das imagens sagradas sem conspurcá-las...
Demanda-se também que o teatro, por si só, tire os alunos das escolas públicas de sua ?situação de risco social?. É certo que o teatro pode ser um precioso canal de expressão das alegrias, dores e lutas desses alunos. Não se pode esquecer, contudo, que a situação do teatro no mundo de hoje é tremendamente desvantajosa, em termos de prestígio social, comparada com outras épocas. Deveríamos perguntar, pois, não só sobre a ajuda que o teatro pode dar aos alunos das classes populares, mas também a que deles pode receber. Pois esses alunos têm, por menor que seja, seu grande trunfo no olhar da margem que são obrigados a desenvolver. É esse olhar que lhes fornece instrumentos para exercer a crítica à cultura e é graças a ele que podem sonhar com (e talvez propor) um mundo novo (TREVISAN). Pode também lhes fornecer instrumentos para denunciar o esgotamento do paradigma teatral hegemônico. As inusitadas formas de se fazer teatro que o cotidiano escolar engendra é uma prova do que aqui se diz.


  
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Edição:

N.º 127
Ano 12, Outubro 2003

Autoria:

Regina Leite Garcia
Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil
Regina Leite Garcia
Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

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