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Serviço Social: Intervir para mudar

Num país com graves carências socio-económicas como Portugal, o serviço social assume uma crescente importância na prevenção de situações de risco como a pobreza, a exclusão ou o insucesso e abandono escolares. É sobre estes problemas sociais que trabalha, há já quase cinquenta anos, o Instituto Superior de Serviço Social do Porto (ISSSP), instituição de ensino superior que passa actualmente por um profundo processo de reformulação curricular e organizacional.
Fomos alguns dos projectos de intervenção social desenvolvidos pelo ISSSP e saber de que forma pode o Assistente Social intervir na realidade escolar, numa entrevista a duas vozes com Luísa Costa Pinto e Paula Cristina Vieira, ambas docentes do ISSSP, que ocupam, respectivamente, os lugares de Presidente do Conselho Directivo e de Presidente da Direcção da Cooperativa de Ensino Superior de Serviço Social.

Em que contexto surge o Instituto Superior de Serviço Social do Porto?

O Instituto Superior de Serviço Social do Porto (ISSSP) é criado em 1956 por iniciativa da Diocese do Porto, tendo como suporte jurídico a Associação de Cultura e Serviço Social. Em 1964, por Despacho Ministerial, viu consagrado o seu Estatuto de Escola Superior não oficial. A análise dos Planos de Estudo permite identificar três períodos na evolução do Ensino em Serviço Social no nosso país: da fundação até fins da década de 50, entre os anos 60 e 70, e a partir dos anos 70.
Esta evolução caracteriza-se pela transição de uma formação de marcada natureza "filosófica, jurídica e paramédica" para uma outra formação fundamentada nas Ciências Sociais. Nos anos mais recentes, intensificaram-se os esforços no sentido da apropriação específica e selectiva de teorias e métodos destas ciências que possibilitem maior competência e autonomia para responder às exigências emergentes da complexidade das transformações sociais.

Uma escola com a importância social que esta revela não deveria enquadrar-se no ensino universitário público?

O ISSSP tomou várias iniciativas no sentido de manifestar o seu interesse pela integração no Ensino Universitário Público. Ao longo do período que decorreu entre 1974 e os dias de hoje, pode dizer-se que muitas energias foram despendidas em processos que envolveram a elaboração de inúmeros relatórios, variadas reuniões e encontros com entidades governamentais e académicas. Todavia, diversos obstáculos se interpuseram ao acolhimento desta solicitação, apesar das várias manifestações de interesse por parte da Reitoria da Universidade do Porto, designadamente em 1982/83, em 1987 e, mais recentemente, em 1998.
Compelido a assumir-se como Ensino Superior Privado desde 1983/84, o ISSSP empenhou-se arduamente na reunião de condições que aproximassem o seu funcionamento de todos os requisitos vigentes no Ensino Superior Público. O corte radical dos financiamentos estatais, que sustentaram o funcionamento do ISSSP no período de 1974 a 1983/84, implicou a constituição de uma Cooperativa de Ensino que tem investido consideráveis esforços para alcançar padrões de qualidade elevados em domínios como a construção de novas instalações, qualificação do corpo docente, de actividades de extensão comunitária e de investigação aplicada e da formação pós graduada.

Qual é o desenvolvimento mais recente dessa tentativa de aproximação?

Em 1999, após nova tentativa junto da Reitoria da Universidade do Porto no sentido de suscitar a integração, foi firmado um Protocolo de Cooperação entre o ISSSP e a Universidade do Porto. Considerando que não existiam as condições favoráveis à concretização da integração do ISSSP, a Universidade do Porto deu um importante apoio à consolidação do ISSSP como instituição universitária através da proposta de formalização de um protocolo que assegurasse a oferta de um programa de formação pós graduada aos docentes e licenciados pelo ISSSP.
Assim, foi criada uma Comissão Paritária formada por elementos do ISSSP e da Universidade do Porto que, entre outras possibilidades, desenvolveu as condições necessárias à criação de um Programa de Mestrado e de Doutoramento em Ciências do Serviço Social. Este contributo da Universidade do Porto para o desenvolvimento estratégico do ISSSP e da formação em Serviço Social é tanto mais decisivo quanto a qualificação científica dos docentes e a sua preparação para a actividade de investigação em Serviço Social são exigências incontornáveis para consolidar a escola e a qualidade da formação prestada.
Todo este esforço de inovação e de desenvolvimento vem sendo concretizado no quadro de uma actividade privada, não obstante a utilidade pública dos profissionais que formamos. Apesar dos trinta anos de múltiplas tentativas para fazermos parte do ensino público e apesar de o exercício da profissão de Assistente Social ocorrer maioritariamente ao serviço de organizações públicas e para públicas, o certo é que o sistema de ensino público jamais manifestou interesse pela internalização desta formação.

De que forma está actualmente organizado o quadro docente da escola?

O Instituto Superior de Serviço Social do Porto dispõe de um corpo docente capacitado para assegurar uma formação qualificada ao actual número de estudantes que frequentam a Licenciatura ? 628 alunos em 2002/03, para além de possuir instalações compatíveis com as actividades leccionadas. Tal como se tem vindo a verificar nos últimos quatro anos, o número de vagas autorizado tem sido de 130.

É um curso com muita procura?

Trata-se de um curso que tem mantido uma procura elevada de candidatos, podendo verificar-se que após preenchimento das vagas, são ainda muitos os candidatos que não acedem ao curso, apesar de reunirem os requisitos legais de nota mínima para o poderem fazer. Registe-se, assim, que nos últimos três anos lectivos foi de trinta o número médio de candidatos excluídos do acesso à Licenciatura.

O papel do Assistente Social na escola

Em que medida pode o Assistente Social ter um papel de parceiro privilegiado na escola?
 
O campo de acção do Assistente Social nas instituições direccionadas para a educação formal foi, durante muito tempo, circunscrito a certo tipo de situações consideradas problemáticas e de carácter mais ou menos residual. A avaliação permanente das funções do Assistente Social, sempre no sentido de aumentar a sua capacidade de intervir positivamente na prevenção dos problemas sociais, tem-se traduzido num sempre renovado e problematizante investimento numa formação visando o alargamento das suas competências.
No contexto da expansão da escolaridade, que torna cada vez mais visíveis as dificuldades de comunicação entre a cultura escolar e as culturas de origem de um número significativo de crianças e jovens, a função educativa é um trabalho por demais complexo, requerendo saberes e competências que, apesar de diversificados, só adquirem eficiência na condição de comunicarem entre si.
Dispondo de uma formação que integra a já vasta produção teórica oriunda das diversas disciplinas sociais que têm vindo a constituir a Educação em objecto de estudo, o Assistente Social reúne boas condições para se constituir em agente catalizador de processos colectivos, promovendo a indispensável comunicação entre saberes e agentes educativos.
A promoção da educação para todos, enquanto meta eminentemente complexa e desafiadora, não pode deixar de impor a criação de capacidades de análise esclarecida e esclarecedora dos vazios e desencontros entre dois contextos socializadores (com implicações notáveis na estruturação de matrizes de percepção, conhecimento e avaliação do mundo e da vida) que são a escola e a família, para já não falar na televisão.

Em que áreas julga pertinente a actuação destes  técnicos?

Actualmente abre-se um campo vastíssimo de actuação ao Assistente Social, nomeadamente  na dinamização de equipas interdisciplinares empenhadas não só na investigação dos factores estruturais geradores de abandono/insucesso escolares ou, mesmo, do ?analfabetismo funcional?, como, ainda, na elaboração e implementação de metodologias e estratégias de intervenção concertadas e cooperantes entre agentes educativos escolares e extra-escolares.
A construção da comunidade educativa, pela constituição de equipas integradoras de todos os agentes educativos - professores, alunos, família, funcionários -, é uma via com potencialidades significativas no que respeita ao conhecimento e valorização das especificidades sócio-culturais dos contextos socializadores pré e extra escolares.
Da vasta profusão dos estudos produzidos pelas diferentes ciências sociais ressalta um apreciável consenso em torno das teses que associam o desinvestimento na aprendizagem dos saberes escolares à imposição de processos de aculturação, destruidores da identidade cultural própria. Daí a importância decisiva dos investimentos na investigação dos contextos sócio-culturais concretos de modo a constituí-los em recurso educativo e pedagógico, criando assim as condições necessárias e adequadas à igualdade de oportunidades na aprendizagem da cultura escolar.

Que projectos tem o ISSSP desenvolvido neste campo?

Foi justamente neste sentido que a Cooperativa de Ensino Superior de Serviço Social/ISSSP fundou a Associação Qualificar Incluir cuja principal aposta é a de proporcionar a mais de 100 jovens múltiplas oportunidades para a aprendizagem de novos padrões de conduta (valores, atitudes e comportamentos) e de saberes qualificantes, através de um intenso e contínuo acompanhamento pessoal e grupal
Em Outubro de 2001, o Instituto Superior de Serviço Social do Porto lançou o projecto "Reconstruir a Identidade Social, forjando Contextos de Socialização Inclusiva?. Este projecto visa reunir condições para investir na construção de respostas concretas às graves dificuldades de integração sócio-profissional de adolescentes oriundos de meios socialmente desfavorecidos.
Para além da prestação de serviços à comunidade, este empreendimento visa proporcionar à formação em Serviço Social promovida pelo ISSSP um campo de investigação aplicada, permitindo testar a concepção e implementação de respostas concretas a problemas sociais com expressão significativa na sociedade portuguesa contemporânea.
Outra modalidade de associação com o ensino de Licenciatura passa pelo envolvimento neste terreno de intervenção de estudantes, quer do 3ºano, desempenhando funções de tutores junto dos adolescentes acompanhados neste Projecto, quer de 4º e 5º anos, no âmbito do seu estágio curricular.
A intervenção tem vindo a congregar diversos apoios: Programa Equal; Fundo de Socorro Social; Programa de Estágios Profissionais do Instituto de Emprego e Formação Profissional e comparticipações do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social do Porto.

Qual é o propósito final desta iniciativa?

Trata-se de uma acção de apoio educativo que se quer de longa duração, já que se pretende acompanhar os jovens em todas as etapas da concretização dos seus projectos de vida, voltados para a conquista de um lugar útil e valorizado na vida social.
A reparação das graves rupturas que marcaram muito precocemente a vida destes jovens não será viável sem a reunião de recursos materiais e humanos significativos. A complexidade e multidimensionalidade dos problemas que impedem estes adolescentes de serem protagonistas de trajectos sociais inclusivos implicam o recurso a formas de intervenção de grande qualidade, designadamente no que respeita às actividades de apoio ao estudo, de educação de atitudes, valores e afectos, de aquisição de competências culturais em domínios como o desporto, a música e outras formas de expressão artística.
A possibilidade de inverter o destino de exclusão, gerando a mudança de atitudes, valores, padrões de comportamento e alargando os conhecimentos e competências indispensáveis à obtenção de uma qualificação profissional portadora de autonomia económica, dignidade e relacionamento sociais, depende estreitamente da criação de um meio de socialização rico, não somente no plano das relações e das referências, como no da interiorização de conhecimentos e competências. Sem esses requisitos decisivos não será possível reparar as marcas profundas e dolorosas deixadas pelas privações materiais e pela debilidade ou rotura dos laços afectivos no seio das suas próprias famílias.

Este projecto levou à criação de uma associação de solidariedade social. Qual é o seu âmbito de actividade?

Sim, o desenvolvimento desta acção levou à criação da Qualificar para Incluir ? Associação de Solidariedade Social, de que a CESSS/ISSSP é sócio fundador. A associação foi entretanto reconhecida como Instituição Particular de Solidariedade Social. Proporcionou, igualmente, a formação de uma rede de parcerias com instituições educativas, de protecção social, de saúde, culturais e autárquicas.
Em 2002/2003, foram acompanhados cerca de 80 adolescentes em risco de abandono escolar com menos de 15 anos, integrados no ensino regular, e 27 adolescentes com 15 anos ou mais que passaram a frequentar o ensino recorrente.
Esta frente de investigação-acção tem-se revelado uma mais valia deveras importante para o aperfeiçoamento da formação em Serviço Social e para o aprofundamento de linhas de investigação aplicada, nomeadamente no âmbito da realização de estudos pós-graduados, conduzidos por docentes do ISSSP.

Um plano curricular orientado para a prática

De que forma está estruturado o plano de estudos da licenciatura em serviço social do ISSSP? Sei que sofreu algumas modificações tendo em conta os pressupostos da Convenção de Bolonha...

O plano de estudos da Licenciatura em Serviço Social, já reequacionado à luz dos princípios preconizados pela Convenção de Bolonha, tem a duração de 4 anos lectivos e mais 1 semestre para realização do estágio. Partindo do princípio de que o profissional de Serviço Social deverá estar capacitado para conceber processos de intervenção vocacionados para actuar sobre as causas dos problemas sociais, o plano de estudos está estruturado de forma a garantir uma formação teórica consistente em áreas disciplinares como a Sociologia, a Economia, a Psicologia e o Direito.
A aprendizagem  do trabalho interdisciplinar é um objectivo central na Socialização escolar do assistente social. Da aquisição dessa competência decorre a possibilidade de conceber modelos de intervenção apoiados em sínteses teóricas complexas, com potencial para gerar acções direccionadas para a multiplicidade e a interactividade dos factores causais que estão na origem dos problemas sociais.

Um plano curricular que se pretende aplicado à dimensão eminentemente prática da profissão?

Sim. Os problemas práticos a enfrentar constituem o verdadeiro motor e o critério primeiro de selecção dos saberes teóricos a investir nas práticas do Serviço Social.
Assim, nos três primeiros anos da formação a estrutura de ensino/aprendizagem tem um carácter  interdisciplinar ? Seminário de Estudo das Práticas de Serviço Social - que permitirá a ligação ao terreno através da planificação de experiências  de observação como meio para desenvolver aprendizagens significativas, facultando uma experiência e vivência directa dos problemas, e, ao mesmo tempo, que as práticas do Serviço Social constituam o núcleo de direcção teórica e epistemológica do processo de integração de saberes.
No 4º ano do plano de estudos os estudantes terão também a oportunidade de aprofundar o domínio quer teórico, quer operativo, de um fenómeno ou problema social observado ao longo dos três primeiros anos nas áreas da gerontologia, insucesso e abandono escolar, humanização dos serviços de saúde e educação para a saúde, violência e negligência familiar. Por outro lado, o aluno poderá iniciar a exploração, através de um processo de investigação/acção, de fenómenos e problemas sociais como as toxicodependências, o desemprego/emprego não qualificante, a pobreza e a exclusão social, comportamentos desviantes/criminalidade, integração social pelo habitat/desenvolvimento local.

Apesar da crescente integração dos técnicos de serviço nas escolas, o facto é que o Assistente Social ainda não atinge o estatuto de parceiro privilegiado no diálogo entre os diversos actores...

Não obstante a ainda reduzida inserção do Assistente Social na escola, o ISSSP tem vindo a desenvolver esta área no plano curricular da licenciatura, proporcionando conhecimentos adequados à preparação de técnicos com capacidade para contribuir no sentido de evitar que a heterogeneidade cultural se constitua em factor de incomunicabilidade e de discriminação disruptora.
Permanentemente empenhado na produção de uma formação mais compatível com o desencadeamento de acções e processos inerentes ao desenvolvimento económico-social do que com o assistencialismo paliativo, o ISSSP oferece, hoje, aos seus alunos uma preparação consistente em áreas do saber cruciais para a emergência de práticas tendentes à efectiva comunicação entre culturas e sistemas institucionais ligados à educação.
Pelo seu carácter simultaneamente interdisciplinar e prático, esta formação faz dele um agente com competência específica no que respeita à inserção da escola em dinâmicas de desenvolvimento que implicam a articulação cooperante entre agentes da educação formal, informal e outros agentes sociais e económicos, em ordem a estreitar a distância entre a escola e a vida activa.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 127
Ano 12, Outubro 2003

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Luísa Costa Pinto

Paula Cristina Vieira

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Luísa Costa Pinto

Paula Cristina Vieira

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