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O Pássaro Encantado

Algures, em 7 de Setembro de 2007

Querida Alice,

O mocho é uma ave nocturna, discreta, atenta. Talvez por isso, no imaginário dos homens, sempre foi associado à ideia de sabedoria. No início do século que precedeu aquele em que vieste ao mundo, foram muitos os mochos sábios que denunciaram a tenebrosa noite que a Escola atravessava. Um desses sábios inventou a seguinte história:
«Um belo dia, deu o diabo uma saltada à terra, e verificou que ainda cá se encontravam homens que acreditavam no bem. Como não faltava a Satanás um fino espírito de observação, pouco tardou em se aperceber que essas criaturas apresentavam características comuns: eram boas, e por isso acreditavam no bem; eram felizes, e por consequência boas; viviam tranquilas, e por isso eram felizes. O diabo concluiu, lá do seu ponto de vista, que as coisas não iam bem, e que se tornava necessário modificar isto. E disse para consigo: ?A infância é o porvir da raça; comecemos pois pela infância?. E o diabo apresentou-se perante os homens como enviado de Deus e como reformador da sociedade. ?Deus?, disse Satanás, ? exige a mortificação da carne, e é preciso começar desde criança. A alegria é pecado. Rir é uma blasfémia. As crianças não devem conhecer nem alegrias, nem risos. O amor de mãe é um perigo: efemina a alma de um rapaz. Torna-se necessário que a juventude saiba que a vida é esforço. Façam-na trabalhar; encham-na de aborrecimento.? Eis o que disse o diabo. Então, a multidão exclamou: - Queremos a salvação! Que deveremos fazer? - Criai a Escola. E, seguindo o conselho do diabo, a Escola foi criada».
Não terá sido em vão a denúncia das trevas que envolviam a Escola. Em breve, poderás, sem receio, dar os primeiros passos num mundo maravilhoso de descoberta dos outros, ir ao encontro de saberes das coisas vivas e inertes, e da redescoberta de ti própria. E não era esta a realidade que te esperaria há meia dúzia de anos, quando a Escola ainda era uma invenção do Demo?
Nesse tempo, a par dos gestos claros das gaivotas e de outras aves de branca magia, havia o contraponto da magia negra de pássaros doentes de inveja, que negavam a realidade e tentavam abolir a esperança. Hoje não te falarei desses tenebrosos pássaros. Evocarei um Pássaro Encantado, ser raro, sensível, que, no tempo em que tu nasceste, contava a história de um ?pássaro branco com cauda de plumas fofas como algodão?, que chorava e tinha saudades como os humanos nem sequer conseguiriam imaginar.
Esse Pássaro Encantado incompreendido pelos pássaros cativos era a esperança dos pássaros fraternos e sonhadores. Comovia-se perante o canto inventado por um outro pássaro mágico de nome Bach, ou quando escutava melodias inventadas por Ravel, um pássaro que deixou muitas melodias por inventar? O Pássaro Encantado havia lido ?A poética do devaneio?, de Bachelard, e descoberto poetas que punham palavras nos sentimentos. Apaixonara-se pela poesia de uma gaivota de nome Pessoa, que escreveu: "Quando te vi, amei-te já muito antes. Tornei a achar-te quando te encontrei..."
Não há fronteiras para as aves migradoras. As cegonhas, por exemplo, percorrem milhares de quilómetros em cada ano, para cumprir o seu destino. Há patos que percorrem grandes distâncias entre as terras onde perpetuam a espécie e o lugar onde se protegem das invernias. Por isso, o Pássaro Encantado abalou para o outro lado do mar, ao encontro da escola ?com que sempre sonhara?. Depois, apercebeu-se de que o sonho não habitava apenas aquela escola das aves, que o sonho morava em muitas, muitas escolas e gaivotas.
O Pássaro Encantado preocupava-se com o futuro dos jovens pássaros, mas não se conseguia abstrair da necessidade da felicidade do imediato. Animado do brilho dos inícios, ia de terra em terra, ensinando a desaprender, ajudando a desinventar o que o Diabo tinha inventado. Seguindo o exemplo do Pássaro Encantado, muitas gaivotas conscientes de que o tempo foge enquanto a eternidade avança, ousavam reinventar a Escola. E, porque sabiam que, se a Escola fora invenção do Diabo, o Diabo fora uma invenção dos homens, as gaivotas já reivindicavam a felicidade do aqui e agora. Tudo isto se passou no tempo em que tu nasceste, para que tivesses direito a ser feliz. Ainda que a escola o tivesse esquecido, ao longo das trevas em que esteve imersa até há escassos anos, o fim último da Escola é mesmo ser feliz.
No já distante ano de 2003, na estante do quarto que foi o lugar onde o teu pai cresceu e se transformou no maravilhoso ser que te gerou, coloquei os livros que o Pássaro Encantado ia escrevendo (livros eram objectos através dos quais os humanos passavam a sua herança cultural, de geração em geração). Ali permanecem, à espera de que a escola que, em breve, te irá acolher, te conceda o privilégio da paixão de os procurar, de os abrir, de os saborear. Sei que te deixarás penetrar pela benfazeja mensagem.
Há quem afirme haver genes culturais. Há quem acredite que, tal como os átomos se perpetuam corpo a corpo, também os sonhos se perpetuam nos seres a que damos vida. Tal como os livros, fico à espera do teu primeiro gesto.
O teu avô José


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 127
Ano 12, Outubro 2003

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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