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A experiência alucinogénea

ALUCINOGÉNEOS

?A primeira vez foi incrível. Foi no Gerês. (...) Foi a ver o pôr-do-sol, encostado a uma árvore. Tive duas coisas opostas: a primeira foi ... vi o sol a nascer, e os raios do sol eram braços mesmo, que vinham até atrás de mim, e sentia calor, sentia tudo... (...) Depois lembro-me que ?távamos sentados a tomar o pequeno almoço, deviam ser ?praí   6.30h, 7h da manhã, e vêm imensos pássaros e quando dou por ela ?tavam mesmo em cima de nós, e não eram pássaros: eram aviões! Fiquei completamente aterrado. (...) E é tudo verdade!?

(relato de uma experiência com ácido lisérgico)

O que é a droga? Longo exercício nos esperaria, se tivéssemos a desinteressante ideia de querer responder a esta questão em tão curto espaço. Estamos perante um daqueles casos que ilustram bem como somos um animal que se instalou no reino do simbólico: entre significante e significado há, com o simples pronunciar da palavra ?droga?, uma miríade de relações que, no limite, tornam a sua definição clara uma pobre expressão daquilo que encerra essa entidade a que chamamos ?mundo da droga?. Mas o sentido mais insistente que o termo evoca é o da alteração: sem droga somos uma coisa. Com ela fazemo-nos outra. E é a relação com o outro que se modifica quando pelo meio se mete a droga.
Ora, não há substância mais capaz de provocar tal alteração do que um alucinogéneo. Não fosse a questão da droga girar em torno das suas definições medico-sanitárias ? coisa que tornou a heroína seu paradigma, pois ela é o paradigma dos estados de dependência ? e poderíamos dizer, a respeito dos alucinogéneos, que droga mais droga não há...
Os anos 60 tornaram conhecido do grande público o mais famoso alucinogéneo de síntese laboratorial: o LSD. Alguns movimentos contraculturais da época, e particularmente o hippie, trouxeram-no para a ribalta das experiências alternativas. Silenciado pelo reinado seguinte da heroína, reaparece hoje como elemento expressivo na cultura juvenil, nas suas vertentes saídas do house ou na redescoberta do psicadelismo, com o Goa Trance. A experiência da trip não é, agora, obtida à custa apenas de produtos sintéticos, mas de cogumelos ? o que liga ainda mais o psicadelismo actual à ancestralidade dos estados translúcidos: a ?moca? tribal nas cerimónias rituais, os estados de espiritualidade radical, a celebração das distorções, das sinestesias, das transformações.
Os alucinogéneos não foram, não são, não serão, uma droga de massas. Mas encontramos a experiência psiconáutica bem implantada em estilos de vida ligados ao cultivo de sensibilidades estetico-existenciais não necessariamente circunscritos aos contextos das culturas juvenis. Isso mesmo nos revelou uma investigação realizada em estratos sociais com elevado capital simbólico e cultural: cerca de metade da amostra tinha tido contacto experimental com alucinogéneos, normalmente numa toma única que não conhecia repetições. A intensidade da experiência faz com que, satisfeita a curiosidade, os indivíduos não o integrem nos seus consumos regulares. Podemos dizer que os ácidos correspondem a experiências intensas mas localizadas num período, ou sem continuidade. São substâncias que pelo seu enorme poder alterador, ganharam uma aura que as faz à uma fascinantes e temidas. A sua utilização é normalmente rodeada de cuidados especiais, para evitar os abismos da bad trip.
Apesar da ancestralidade da experiência alucinogénea, com o cogumelo amanita ou o yagé como agentes entre os indivíduos e a espiritualidade, a exaltação e a magia, não foi este tipo de vivência que veio a marcar aquilo que entendemos por droga. Daí que os alucinogéneos continuem  substâncias de difusão restrita e relativamente elitista. Mas o ácido pode ser definido como a droga por excelência já que é a substância que mais radicalmente altera a consciência. Não se trata apenas da percepção alterada ? é também a temporalidade e o lugar do indivíduo perante si e perante o mundo que se transformam durante o acontecimento lisérgico. Droga de revelação, apela a uma experiência altamente mentalizada e à viagem psiconáutica ? quase o negativo da heroína. Deixamos para o leitor o exercício de detectar as profundas diferenças entre alucinogéneos e os psicoativos que têm protagonizado o discurso dominante e sido a fonte dos principais estereótipos acerca do ?mundo da droga?.


  
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Edição:

N.º 124
Ano 12, Junho 2003

Autoria:

José Luis Lopes Fernandes
Univ. do Porto
José Luis Lopes Fernandes
Univ. do Porto

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