Página  >  Edições  >  N.º 123  >  O grau zero da autonomia contratualizada

O grau zero da autonomia contratualizada

De acordo com o ?Regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos de educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, bem como dos respectivos agrupamentos?, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio, os órgãos escolares poderão tomar a iniciativa de propor à Administração a ?celebração de contratos de autonomia?, os quais serão negociados com os serviços desconcentrados do Ministério da Educação. A assinatura de um primeiro contrato conferirá às escolas a possibilidade de exercer uma autonomia de nível 1, após o que, na sequência de uma avaliação positiva, poderá haver lugar à transferência de mais competências para a escola.

Curiosamente, durante a vigência do Governo do Partido Socialista, a quem coube a aprovação do acima referido normativo, não foi assinado um único ?contrato de autonomia?, nem sequer de 1ª fase.
Isto significa que o ?novo regime?, no essencial, apenas produziu mudanças de carácter morfológico, alterando as designações e a composição de diversos órgãos escolares, mas deixando incólume as prerrogativas do poder central ou, nalguns casos, permitindo mesmo a sua recentralização. Na ausência de uma efectiva política de descentralização orientada para uma governação mais democrática do sistema educativo e das escolas, volta a revelar-se impossível o ?reforço da autonomia? dos estabelecimentos, a concepção e aprovação de ?planos de desenvolvimento? e a execução de ?projectos educativos? próprios de cada escola ou agrupamento. Neste domínio essencial à democratização dos poderes educativos e à autonomia da escola, o ?novo regime? em pouco difere do ?velho? modelo de gestão que vigorou entre 1976 e 1998; também ele havia já concedido certos poderes de execução às periferias (principalmente aos professores) mantendo a centralização do poder e o exclusivo da governação das escolas a partir de cima e de fora, isto é, através de órgãos de direcção exteriores às próprias escolas.
Se até agora não foi assinado qualquer ?contrato?, figura considerada central pelo ?novo regime?, então não pode deixar de se concluir que, do ponto de vista jurídico-formal, as escolas se encontram no grau zero da autonomia contratualizada. É que embora as escolas e os actores escolares gozem de margens de ?autonomia relativa?, estas não são necessariamente sinónimos de autonomia legítima e democraticamente exercida, antes assumindo frequentemente o estatuto de ?infidelidades? às normas ou de autonomias ?clandestinas?, compatível com a reprodução de uma administração centralizada. Tal reprodução ficou clara quando as assembleias constituintes, após conceberem e aprovarem os respectivos regulamentos, os subordinaram à aprovação da Administração. As instâncias de controlo assumiram autoritariamente o papel de exegetas autorizados e de intérpretes legítimos do ?novo regime?, devolvendo às escolas tudo aquilo que não coincidia com a sua visão, assim impondo e uniformizando soluções através de um processo que recusava, na prática, a mudança política da administração.
E é esta permanência de um controlo centralizado que, não obstante a retórica e as ambiguidades legais, impediu a Administração de assinar um único ?contrato de autonomia?, embora tivesse chegado a produzir um projecto de ?minuta de contrato?? Não são portanto os actores escolares que estão especialmente impreparados para o exercício da autonomia; são sobretudo os actores políticos e administrativos centrais que se manifestam impreparados e resistentes face a cenários de descentralização.
Face aos actuais sinais de reconcentração do Ministério, acompanhada de alguma descentralização a nível municipal, assim podendo operar combinadamente como uma estratégia de tenaz que acentua o controlo sobre as escolas, não parece plausível uma ruptura com conceitos e práticas meramente instrumentais ou operacionais de ?autonomia? (do género, sejam autónomos na busca criativa de melhores formas de execução das decisões centrais). Mas não será surpreendente que o actual Governo venha a recuperar e a reconceptualizar a ideia de ?contrato de autonomia?, possivelmente já no quadro de um ?novo modelo? de gestão que, de novo, foi anunciado; e que venha, efectivamente, a assinar tais contratos pela primeira vez.
À luz de uma ?autonomia? apenas implementativa, a designação pode facilmente ser reconvertida, ou até mesmo preservada, mas para dar lugar à assinatura de ?contratos de gestão? baseados na tão em moda ?gestão por resultados?, defendida pelos paradigmas da ?administração pública empresarial?.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo