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Um Outono breve e súbito

A Lurdes é que os arranjara. Não sabíamos como ela os tinha conseguido. Anunciara na última reunião que se estivéssemos interessados em ter bichos-da-seda nas nossas salas, alguém lhos daria.

Há já há uns meses que trabalhávamos juntos. De estranhos passáramos rapidamente a cúmplices, fruto das agruras do quotidiano que tínhamos começado a partilhar por obra e graça de um concurso tão cego quanto surdo. Tornáramo-nos, assim, herdeiros de uma escola mal afamada, onde as pessoas que nos recebiam eram aquelas que tinham sido aí colocadas antes de nós. Do ano anterior permaneciam, somente, as duas auxiliares de acção educativa, o inventário ratado e a sala incendiada que, logo na entrada, não augurava nada de bom. As informações escasseavam na justa proporção dos boatos que se amontoavam. Quem eram os outros que se sentavam à volta daquela mesa ? De onde vinham ? O panorama não era dos mais animadores. Um dia alguém perguntou se estávamos interessados em pegar aquele touro pelos cornos ou se preferíamos optar, antes, pela estratégia silenciosa do atestado médico anónimo e discreto. Entre a militância de alguns, a resignação de uns tantos e o aguenta-te à bronca dos restantes decidimos fazer-nos à vida e tentar a sorte. Foi assim que tudo começou. Aprendemos a enfrentar, como nossos, alguns dos problemas dos outros. Começamos a construir pequenos projectos em comum. Os dias não se tinham tornado mais fáceis, mas a Câmara prometera reconstruir a sala e os olhares de soslaio dos habitantes do bairro foram-se tornando um pouco mais afáveis.
A chegada dos bichos-da-seda foi assim mais uma daquelas surpresas com que, por vezes, tentávamos cativar os nossos alunos.
Ó professor, o que é que comem os bichos ?
Folhas de amoreira.
O Picas trouxera algumas, mas a bicharada, por qualquer razão, não as comera. Acontecera isso em todas as salas. Porquê ? Ninguém sabia responder. Procurou-se numa enciclopédia, inquiriu-se em tudo o que era sítio e as respostas eram sempre as mesmas. Folhas de amoreira.
Ó Lurdes, já perguntaste na Sociedade Protectora dos Animais ?
E os bichinhos tantos dias sem comer, ó professora...
O que é que podíamos fazer ? A resposta acabou por aparecer. Por acaso. Surgiu num telefonema onde o drama dos bichos-da-seda foi falado. Onde é que vocês vão buscar as folhas de amoreira ? Finalmente, alguém tinha feito a pergunta certa. A pergunta que levou o Mocho, o Pedras e o Cardinal a subir às amoreiras de Marechal Gomes da Costa e a transformar aquela manhã primaveril num momento outonal, súbito e breve, com o chão inundado por aquelas folhas preciosas que durante alguns dias confundíramos com a folhagem das amoras silvestres que tínhamos andado a desbastar num morro junto da escola.
Os bichos-da-seda salvaram-se. Vimo-los construir os seus casulos. Esperamos pacientemente pelas borboletas. Houve quem fizesse observações diárias e as registasse. Houve quem aproveitasse para lançar projectos de pesquisa vários sobre a vida animal. Houve quem nada fizesse, deixando os miúdos usufruir, conforme lhes aprouvesse, da companhia daqueles pequenos seres que lhes entraram, um dia, pela porta dentro. Houve também quem nada fizesse por não saber o que podia fazer ou até por não o querer fazer. Aquela escola era, afinal, uma escola. Não era um paraíso, apesar de por lá haver alguns anjos bardinas que um dia voaram em contravenção sobre as árvores sumptuosas de uma avenida da cidade, em nome de uma preocupação inesperada com uns quantos bichos-da-seda. Rasteiros e feios.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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