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Uma conversa que não se acaba.

Este texto trata de memória, tecnologia, tradição, modernidade, num projeto que acontece na articulação destes elementos a partir de uma das manifestações mais expressivas da cultura do Rio de Janeiro: o samba. Com suas histórias, tecidas cotidianamente pelos seus amantes, compositores, intérpretes e a multidão que se reconhece e se encontra nos espaços, sejam eles concretos das rodas de samba ou simbólicos da canção, da dança e dos inúmeros rituais onde essa gente recupera, transforma e alimenta essa complexa trama das nossas identidades.

O samba e seus operários

?O samba agoniza, mas não morre?.
Nelson Sargento.

O samba sempre pressupôs um circuito de trocas bastante intenso, desde a famosa casa da Tia Ciata, passando pelos botequins, pelas rodas-de-samba nos morros e subúrbios, pelos piqueniques em Paquetá, pelas festas da Penha e da Glória, pelo pagode no próprio trem da Central ? estratégia utilizada por Paulo da Portela para fugir da repressão policial. Diferentemente de outras manifestações musicais, o samba envolve um longo processo de socialização, o estabelecimento de uma rede de relacionamentos pessoais, o partilhar de uma memória comum, com tradições e "culto" aos ancestrais. É um processo interminável, em permanente elaboração, de re-construção de uma memória negra e popular (Alvito, 2000).

E são os compositores, vitais na consolidação deste patrimônio nacional, são os ?fundadores?, depositários dessa herança cultural. Mantêm as escolas de samba, registram com sua arte as histórias da nossa gente.    
A intenção do Puxando Conversa é usar a linguagem audiovisual ? o vídeo e a projeção de imagens no telão ?  para mediar o encontro de compositores de samba, suas histórias, suas composições com a memória dos parceiros e dos que, de alguma maneira, habitam/transitam o mesmo território do samba.
Os ?encontros? mostram as formas como estas pessoas estabelecem suas maneiras cotidianas de estar no mundo, de viver a solidariedade, as contradições, a moral, os processos de socialização. Os ?golpes?, as ?malandragens?. A dura realidade desta gente e as maneiras que encontram para sobreviver, tanto econômica e financeiramente quanto emocionalmente. Como reagem, na presença de um «sofrimento satisfatório», que no dizer de Romildo, (compositor), «não é aquele sofrimento pesado, é um sofrimento mais leve, mais maleável, aquele que você ta passando, mas diz, não tem nada não, vou dar a volta por cima» (1998). Conseguem driblar a dor encontrando um parceiro e fazendo um samba: «o meu cantar foi a maneira que eu achei, pra não guardar, o pranto que eu não chorei(1)». 
São conhecimentos para além daqueles consagrados à cultura letrada, que não estão somente naquilo que é dito ou no óbvio do que parece explícito, mas, nas sutilezas dos desvios, das «táticas de praticantes», (1994) que, para Certeau, são as maneiras que o «homem ordinário» encontra para burlar, negociar, o que se supõe ?destinado? a ele e só lhe cabe obedecer. Estes conhecimentos podem se revelar nas malandragens do corpo, do ritmo, enfim de uma cultura popular negra que teve/tem que constantemente afirmar-se no mundo dos brancos.
Quantos compositores, quantas pessoas que se juntam para testemunhar: Catoni (1998), com um registro vocal impressionante, mantendo vivos elementos da cultura negra, como o agradecimento aos sintomas de estar vivo e de que «deve haver alguém impulsionando tudo», por isso ele nos lembrava que era preciso agradecer: «já que dormimos dentro da noite, por que pela manhã não agradecemos, por ter usado uma noite?»
E poderíamos chamar para a roda, muitos outros, como Luiz Grande, um ex-motorista de táxi e sua originalíssima maneira de compor de dividir os versos evidenciando de forma magistral a síncopa, naquilo que ela exige da presença do corpo, que faz parte do samba, já que o samba não se conforma em ser apenas cantado, tem que ser vivido com o corpo todo. Se a síncopa é a batida que falta, ou seja, «a ausência no compasso de marcação de um tempo (fraco) que, no entanto repercute noutro mais forte»  como diz Sodré (1998), a sincopa, «atua incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio com a marcação corporal ? palmas, meneios, balanços, dança. É o corpo que também falta ? no apelo da sincopa. Sua força magnética, compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio rítmico) de se completar a ausência do tempo com a dinâmica do movimento no espaço» (p. 11).
Assim, as coisas que transitam no samba, não são apenas da ordem da racionalidade, ou pelo menos, de uma racionalidade já consagrada como alguma coisa relacionada aos meios científicos. Às vezes, entender o samba, se o consideramos apenas como um estilo musical ou a partir dos sucessos da indústria fonográfica e dos desfiles das escolas de samba é reduzi-lo a um produto da indústria cultural. Ele nos fala de uma cultura negra que preza o acolhimento, a corporalidade, a oralidade, o olho-no-olho. Ele nos remete ao comando de Èsù (2), o verdadeiro dono do corpo, da comunicação e princípio do movimento. Aí, como diz a letra de um samba de exaltação à Mangueira, temos que considerar que «a vida não é só isso que se vê».

  • (1) Rio seco, composição de Romildo e Toninho Nascimento.
  • (2) Exu, como é comumente conhecido.

Referências bibliográficas:

  • Alvito, Marcos. Puxando Conversa. In FILÉ, Valter. Batuques, fragmentações e fluxos. Rio de Janeiro : DP&A Editora, 2000:113/128.
  • CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano ? artes de fazer. Petrópolis, RJ : Vozes, 1994.
  • SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro : Mauad, 1998.
  • Vídeos do Puxando Conversa:
    • Histórias ? fios desencapados, com Luiz Grande, Barbeirinho do Jacarezinho e Marcos Diniz. Produção TV Maxambomba, realização Cecip, RJ, 1998.
    • Cheio de Cantigas ? Romildo. Produção TV Maxambomba, realização Cecip, RJ, 1998.
    • Muitos enredos, várias alegorias, com Dedé da Portela e Norival Reis. Produção TV Maxambomba, realização Cecip, RJ, 1998.
    • Um velho chamado Catoni, com Catoni. Produção TV Maxambomba, realização Cecip, RJ, 1998.
 

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

Valter Filé
Univ. do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil
Valter Filé
Univ. do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil

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