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Era uma vez... uma pedra da idade da pedra

Algures, no dia 4 de Setembro de 2007

Querida Alice,

Como sabes, uma pedra é coisa para não sair do sítio onde nasce ? poderemos, neste caso, atribuir a um objecto inerte qualidades do que se supõe estar vivo... E aquela era uma pedra mesmo pedra, teimosamente enraizada no lugar onde o nascimento do universo a tinha plantado. Estava plantada mesmo à beirinha da escola das aves.
Há muitas espécies de pedras. Mas aquela pedra pertencia a uma espécie rara. Era uma pedra da idade da pedra. Geração após geração, como toda a pedra que se preze, a pedra da idade da pedra tudo ouviu e nada disse. Mas a pedra de idade da pedra não era uma pedra qualquer, era uma pedra especial, uma pedra de sentar para encontrar amigos. Sempre que uma avezinha cansada de voar ou uma gaivota saciada de espaço nela pousava para repousar, logo a pedra mágica se transformava num ninho de afectos que atraía outros pássaros de doce chilrear. 
A pedra da idade da pedra era para a escola das aves como a pedra angular das catedrais. Não era uma pedra de sustentar abóbadas, mas inspirava idêntico sossego e exalava a mesma doçura que tem um pelicano de asas imensas, protectoras. Em tempos adversos, quando os céus ficavam cobertos de nuvens de negros presságios, era aquela pedra da idade da pedra que zelava pela conservação da herança de tempos suaves.
A pedra da idade da pedra era também a fiel guardiã da memória dos pássaros. Há pedras assim, fundadoras, que contagiam a memória dos pássaros jovens com pressentimentos de antigos e aconchegados ninhos. Numa das manhãs que sucederam à medonha invasão das negrelas, calhou de uma gaivota pousar sobre a pedra da idade da pedra. A gaivota estava exausta. Só a memória de distantes e admiráveis dias lhe concedia algum ânimo para resistir, porque, entre certas espécies, os pássaros que cometem crimes gozam de impunidade, e alguns até chegam a ocupar altos galhos na hierarquia. Nesses nichos de pássaros de duvidosa moral, quanto mais alto o galho, maior a impunidade. Por isso, os pássaros despidos de alma conspiravam na sombra e debilitavam laços.
Tudo o que te venho narrando nestas cartas se passou enquanto aprendias a balbuciar as primeiras palavras, sem te dares conta de viver um tempo sombrio. Como ia dizendo, numa das manhãs que sucederam à medonha invasão das negrelas, calhou de uma gaivota pousar sobre a pedra da idade da pedra, uma pedra que não era igual a outras pedras, uma pedra detentora de inefáveis dons, de uma clara magia. Sempre que uma gaivota nela pousava e cerrava os olhos, subia da pedra da idade da pedra um suave perfume e eflúvias meditações se produziam. De imediato, do recanto mais íntimo de um lugar onde os homens supõem não haver lugar para a imaginação, assomavam humanos pássaros, míticos seres a que se convencionou chamar anjos. Estes seres alados, dotados de brancas e poderosas plumas que os elevam acima dos voos dos rasantes humanos, despertavam na mente das gaivotas memórias de tempos futuros, em que o arrojo de um Ícaro já não teria a temer o ardor do Sol. Não me refiro ao ?sexto anjo, que mergulhou a sua taça no grande rio Eufrates, secando-o e preparando o caminho para os reis de Leste?, mas àquele que, na Bíblia, avisava o mundo de um eminente ?Juízo Final?.
As gaivotas da escola das aves não se preocupavam somente com as avezinhas que nela habitavam. A gaivota que pousou na pedra da idade da pedra pensava nos bandos que peregrinavam na direcção da Primavera que despontava a Norte. A gaivota meditava sobre o destino das aves que, pelo mês de Março, seguem o curso do Tigre e do Eufrates, rumo às longes terras do Norte, para aí nidificar. A gaivota sabia que o instinto já havia afastado as cegonhas e os pelicanos de África e que, por força da cupidez de alguns homens, as migratórias aves se arriscavam a perecer a meio caminho de uma longa viagem.
Há milénios, Aristófanes escreveu uma peça de teatro que tinha por título ?Aves?. Nessa peça, as aves detinham qualidades dos humanos seres e por aí nenhum mal viria ao mundo, bem pelo contrário. Ao invés, o imaginar a humana imperfeição detentora de aéreos dotes inquieta e aterroriza, se evocarmos a chuva mortal derramada por pássaros metálicos sobre cidades indefesas? Porém, o que para assustadiços pássaros poderia constituir motivo de profundos receios foi para a gaivota desta história uma presença apaziguadora, uma promessa de tempos prometidos, em que o lobo pastará com o cordeiro; de um tempo em que os infiéis abutres, à míngua de pútridas carcaças, se transfigurarão em vegetarianos; de um tempo em que o Tigre e o Eufrates não mais serão sobrevoados por terríficas ou fugidias aves, mas por voos serenos rumo ao Éden, o paraíso que os textos sagrados situaram nas terras que foram da antiga Suméria; de um tempo em que os ares se cobrirão de pombas transportando ramos de oliveira... Foi isto mesmo que o anjo evolado da pedra da idade da pedra segredou a uma gaivota comovida e muda perante tanto sofrimento e tamanha destruição.
E o coração da gaivota sossegou.


  
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Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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