Página  >  Edições  >  N.º 123  >  O Cadáver do Desporto Escolar

O Cadáver do Desporto Escolar

Em consequência, nesta educação moribunda em que o cadáver do desporto escolar corre o risco de entrar em putrefacção, os nossos estimados governantes têm de decidir, rapidamente, se o querem queimar ou se o querem comer.

Historiador dos mundos persa e grego, civilizações que se confrontaram na segunda metade do século V aC, num tempo em que as guerras eram uma jogo de regras equilibradas, Heródoto (490-430 aC), um dos pais da história, encontrou na experiência terrena as respostas às perguntas relativas à própria essência da vida. Uma das questões por ele colocadas é simples, directa e clara: Será que o padrão de comportamento dos homens reflecte a própria natureza humana ou é o resultado de um processo de aquisição de convenções, sedimentadas ao longo dos tempos?
Durante as guerras entre os gregos e os persas, Dário, rei dos persas, perguntou a alguns guerreiros gregos quanto dinheiro lhes tinha de oferecer para eles comerem os próprios pais após a sua morte. Os gregos sentiram-se ofendidos com tal pergunta. Heródoto continua a sua narrativa e conta-nos que Dário também perguntou a alguns guerreiros indianos que costumavam comer os cadáveres dos seus pais, quanto dinheiro queriam para em vez de os comerem, queimarem-nos tal como os gregos o faziam. Claro que os indianos se sentiram, de igual modo, ultrajados com tal proposta. Heródoto concluiu que a diferença e a tradição comandam a vida das comunidades e dos povos.
Esta perspectiva de encarar a vida, implica que não existem verdades absolutas pelo que, em termos actuais, diremos que estamos perante uma perspectiva contingencial em matéria de gestão de situações complexas, em que tudo tem a ver com tudo, a solução depende do contexto e ela própria altera as condições do problema.
Claro que hoje, perante o pragmatismo que governa a vida, em que na ausência de princípios, de valores e sobretudo de palavra, já há pessoas que se recusam a falar a não ser na presença de testemunhas, a arte da argumentação, naquilo que tem a ver com a procura de ideias e a produção de soluções, está a cair em desuso. O sentido de urgência que os absolutistas sem quaisquer dúvidas acerca de tudo e qualquer coisa estão a impor à sociedade, tolda-lhes o espírito e impede-os de ver a dialéctica da realidade da vida, pois a velocidade comanda-lhes os comportamentos. Parece que se esqueceram que, tal como existe um ?elo secreto entre a lentidão e a memória?, existe outro entre ?a velocidade e o esquecimento?. Se como Kundera dissermos que o grau de lentidão é directamente proporcional à intensidade da memória, da mesma maneira que o grau de velocidade é directamente proporcional à intensidade do esquecimento, ficamos sem saber se esses detentores da verdade única se esquecem da lógica da vida porque vivem a uma velocidade vertiginosa ou vivem a uma velocidade vertiginosa porque já não suportam a própria vida. Para Heródoto, comer os mortos ou queimá-los significava tão só a impossibilidade de uma ciência absoluta e, em consequência, de uma única solução, pelo que para ele o tempo era necessário para ponderar sobre os mistérios da vida e a multiplicidade das opções possíveis.
Portanto, quando mais uma vez, desde que Abril chegou a Portugal, os novos senhores da educação se preparam para engendrar uma  ideia única, mais rápida, mais forte e mais eficaz para o desporto escolar, sem que se conheçam os motivos, estejam identificados os objectivos ou delineada a estratégia, e fazem-no aparentemente movidos por um fundamentalismo ideológico que, com o argumento dos holofotes das televisões, defende que a população escolar tem de ser colocada, sem alternativas, ao serviço do rendimento, da medida, do recorde e do profissionalismo precoce que deve alimentar o espectáculo desportivo, é porque se está a abraçar um imperialismo ideológico que, tal como no passado, acabará por colocar o desporto e os jovens ao serviço de um governo que arrisca o pensamento totalitário.
Nestas circunstâncias, temos de concluir que sendo certo que o comportamento humano é um processo de aquisições culturais sedimentadas ao longo do tempo, ele é, também, revelador das próprias fraquezas da natureza humana. Em consequência, nesta educação moribunda em que o cadáver do desporto escolar corre o risco de entrar em putrefacção, os nossos estimados governantes têm de decidir, rapidamente, se o querem queimar ou se o querem comer.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa
Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo