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Obra Completa de José Marmelo Silva

Doze anos passados sobre a sua morte, aparece agora nas livrarias numa edição rigorosa e cuidada a Obra Completa de José Marmelo e Silva (1911-1991), um dos autores portugueses mais silenciados em vida e cujas obras poucas vezes chegaram a merecer a atenção dos leitores. E se existem escritores que nunca utilizaram a chamada ?estratégia da glória?, podemos dizer uma vez mais que o autor de Sedução pertenceu realmente a esse escasso número de verdadeiros criadores.Com uma obra literária bastante reduzida (cinco ou seis livros publicados e reeditados ao  longo de mais de cinquenta anos), mas significativa, pelo reconhecimento unânime da crítica, no que respeita à sua admirável qualidade criadora, a ficção de José Marmelo e Silva afirma-se como realização de um escritor que nunca teve pressa, esperou que o tempo confirmasse a importância dos seus livros, os leitores se aproximassem deles e soubessem entender o sentido profundo e autêntico de uma obra que se revela ímpar no seu verdadeiro sentido estético e literário.
Partindo com a chamada corrente neo-realista, mas antecipando-se numa perspectiva do fenómeno literário mais adequada aos valores da sua época (Sedução, de 1937, situa-se muito perto de alguns escritores da ?Presença? mais do que da primeira vaga neo-realista), Marmelo e Silva nunca deixou de se identificar com esse movimento que, apesar de certas limitações estéticas e literárias, produziu obras de clara desmistificação social num tempo excessivamente nebuloso e de quase colectivo pânico cultural. Mas o autor de Anquilose sempre procurou situar-se para lá dos valores ideológicos do neo-realismo, ultrapassar algumas barreiras de um esquematismo demasiado evidente, desdobrando a criação literária em dois sentidos ou opções aparentemente diversas: por um lado, a fidelidade ou arreigamento a um mundo real, bem objectivado em claras razões e desigualdades sociais, a visão lírica, sentimental e poética de um mundo a que não deixou de ser fiel, como nas histórias de ?Narrativa Bárbara?, ?Ladrão?, ?O Conto de João Baião? e no amargurado, lúcido e polémico testemunho que deixou em Adolescente Agrilhoado, colocando a nu toda a verdade e realismo de um ambiente fechado e alienante (que tem paralelo num idêntico grito de revolta na Manhã Submersa, de Vergílio Ferreira); por outro lado, a libertação plena de uma imaginação rica de experiências, sinuosa nos labirintos em que penetra, descobrindo, aqui e além, a exacta medida do que nos compromete, tendo sempre em conta uma nítida intenção social e histórica a que a arte de escrever de Marmelo e Silva confere uma dimensão e rigor literário bem definido e expressivo: desse modo, sim, se pode e deve entender Sedução e também essa novela de excepcional recorte literário e social que é Depoimento e entronca directamente na longa e belíssima novela Anquilose,sem alterar ou deixar de lado a estrutura ficcionista da sua primeira versão de 1968.
Obedecendo ainda a esse núcleo problemático a que um dia Mário Sacramento pôde chamar com justeza e razão ?insurreição dos mitos?, Anquilose abre para uma outra atitude de escritor, mais disponível e até descomprometido, esquecendo qualquer forma de esquematismo literário ou de fidelidade a ?cânones? impostos e assim se revela como um dos melhores textos ficcionais de um escritor de quem é muito difícil escolher o que mais nos entusiasma, comove e agrada. Como experiência vivida, pensada, revivida e contada em termos de ficção criativa, Anquilose, agora relida nesta Obra Completa, evoca ainda certos aspectos de um mundo fechado ou alienador, denunciando situações que tendem sempre para uma aventura dividida entre as suas várias personagens femininas, talvez como indício de existir um primeiro amor que tudo determina. Mas o sentido irónico que tantas vezes se descobre nos ?quadros? da novela manifesta também outra das qualidades do estilo e linguagem de Marmelo e Silva, sem que isso sirva para destruir a verdadeira intenção em que se desdobra toda a história. Porque a carga expressiva da sua linguagem crítica, surpreendente e firme, a beleza de um estilo que é inconfundível, a sensibilidade com que esboça e retrata as figuras de mulheres e aborda os conflitos amorosos, revelados num denunciador contexto histórico e social, tudo isso faz parte do universo ficcionista de José Marmelo e Silva que, como declarou ainda Mário Sacramento, ?faz deste escritor não só um dos casos mais notáveis da moderna literatura portuguesa, mas o que mais fundo exprime e ensaia o significado da arte como libertação do homem - como reintegração do homem?.
Numa edição coordenada por Maria de Fátima Marinho, a Obra Completa de Marmelo e Silva, agora mais acessível aos leitores, inclui ainda uma bibliografia activa e passiva, a cronologia e biografia do Autor, além de fazer acompanhar cada um dos livros com textos de introdução de Arnaldo Saraiva, Maria Alzira Seixo, Rosa Maria Martelo, Maria Morais Silva, Pedro Eiras e Celina Silva, que assim permitem uma melhor e mais clara compreensão da posição sempre assumida por Marmelo e Silva. Tardou mas cumpriu-se, pois, a justa forma de reabilitação do autor de O Sonho e a Aventura que, numa perspectiva crítica, é deste modo enaltecida num trabalho de grande importância editorial e torna mais visível toda a sua obra literária.

Uma carta inédita de JOSÉ MARMELO E SILVA a Serafim Ferreira

Como forma de homenagem à memória do autor de Sedução, agora que acaba de ser publicada a OBRA COMPLETA, publicamos aqui uma sua carta inédita, na altura em que preparamos a edição das CARTAS de José Marmelo
e Silva, recebidas entre 1967 e 1986 e cujo interesse literário e crítico, e por vezes confessional, não pode continuar silenciado.

        
        Meu Prezado Amigo:1
 
            São palavras animadoras as que lhe oiço e me trouxe a s/ carta. Terá toda a razão  na s/ referência  à culpa que a  mim  me cabe  no "esquecimento"  a que Lisboa condena o escritor que vive na província. (Lisboa = governos, leis, editores, compadrios... e tudo o mais que há-de desvendar-se um dia). Mas, desde já lhe confesso, a m/ culpa em nada me entristece. Pelo contrário: Assumo a responsabilidade dela (paradoxalmente, bem sei) com alguma satisfação, até. Na verdade, quantas vezes me julgo, me acuso, me censuro, - outras tantas me absolvo. Acabo sempre por considerar expressivo o m/ silêncio. Assenta no mais profundo de mim. Poderá significar resistência, recusa, reprovação, - ou uma asfixia. Veja bem: O escritor é hoje, na sociedade portuguesa, um marginal. Os truques e as tricas da engrenagem (que tanto conduz o medíocre à escalada como corta o passo ao mais capaz) revolvem-me visceralmente, só de pensá-lo. A regência estatal ignora-nos. Ou melhor: despreza-nos. Sabe que não temos autoridade. O divisionismo ou o que quer que seja fervilha entre nós, neutraliza-nos. Não somos capazes de modificar a n/ situação, como  havemos de modificar a sociedade?  Há uma dispersão de forças. Há uma debandada. A regência estatal não dá pela nossa existência. Nós até teríamos vontade de lhe mostrar o cagueiro (ver R. B. in Le plaisir du texte)2 se ela nos dissesse "Vem por aqui!" (Régio, C. Negro). Mas nem isto ela já nos diz. Assim:
            Tudo o que me parece estimulante para uma nova escrita é desatar a dar  porrada até se fartar.Começar a malhar-lhes na lombada. Arrancar--lhes a máscara. São acaso as consagrações oficiais que nos compensam?  Haverá nelas, ao menos, um mínimo de seriedade, compreensão, justiça? Não. O que vemos é demagogia descarada, aviltamento nosso3.
            O Caso Torga: Será com discursatas, penteados, palmas e mais palmas que se dignifica o trabalho literário escravo? Com este "Vou ali e já venho" resolverão ministros e secretários o problema do escritor, o problema da cultura? Que diferença há entre esta mascarada e o "esquecimento"?  Que mais faz?  E o Torga, porquê? Porque poetou contra a descolonização? Porque berrou o s/ anterior canto à Liberdade4?
 
 
            Como vê, tudo o que nos vem, ainda que do alto, não traz outro aroma senão o duma fumegantíssima trampa.
            E basta, por hoje, que esta vai longa e nada odorífera. Tinha ainda uns "desabafos" a respeito da n/ cara APE, da qual, para os pagantes do Norte (do N e do C e do S) nem sequer um resumo, um sumário, uma notícia teve desses grandes panegíricos já feitos e doutros a fazer. Ficam (os desabafos) para quando da s/ vinda ao Porto. Venha, pois, e avise-me.

Com o abraço amigo do José Marmelo e Silva.

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  1. Carta datada de Espinho, 11.Janeiro.1979.
  2. Roland Barthes, O Prazer do Texto.
  3. Sentido e enraizado protesto de Marmelo e Silva sobre a condição do escritor em Portugal: antes e depois de Abril/74, é certo. Como noutros passos das suas cartas, as razões que avança para justificar a sua atitude revelam-se de uma clareza meridiana. Aliás, foi essa sempre a posição que soube e quis assumir, repetimos. E por isso pagou. Mas o seu "caso" não é único na  nossa literatura, como se sabe.
  4. As alusões a Torga justificam-se aqui como protesto (ainda) ao cortejo de homenagens que então se prestaram ao autor de Contos da Montanha em todos os quadrantes da vida cultural e política portuguesa.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 122
Ano 12, Abril 2003

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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