Quando, em Novembro passado, teve lugar, em Cascais, um denominado Encontro de Estudos Políticos, em que diversas personalidades portuguesas e estrangeiras debateram um tema já tão crucial como "Guerras de Cultura no Ocidente", provavelmente ainda ninguém pensava que os Estados Unidos pudessem assumir, em nome da Cultura Ocidental, a necessidade de uma guerra contra o Iraque. De uma notícia que guardámos sobre aquele Encontro ficou-nos a ideia de que um participante americano considerava existir um estado larvar de "guerra de culturas" sempre que as chamadas instituições sociais de base (Estado, família, escola) reflectissem a ausência de "padrões morais objectivos" - devendo compreender-se por estes, obviamente, as "concepções particulares do bem" com que o Ocidente moldava os seus paradigmas da Moral e da Cultura ... Terá havido, em contraponto, quem, falando pela Europa, discordasse da expressão "guerras de cultura", a avaliar por uma afirmação transcrita do participante americano: "Se a expressão "guerra de culturas" não faz sentido na Europa, isso só pode querer dizer que uma das partes nessa guerra está calada, ou tem receio de se fazer ouvir. E não vou ter dificuldades em adivinhar qual." Curiosa afirmação esta, quando nos lembramos de que, três meses depois, um secretário de Estado americano, Rumsfeld, se referia à posição que a França, a Alemanha e a Rússia tomavam contra qualquer guerra desencadeada sem o consenso do Conselho de Segurança da ONU, considerando-a como própria de uma "velha Europa", e outro, Powell, "previa" as más consequências nas futuras relações entre aqueles países e os Estados Unidos. Só faltou dizer, como um estadista norte-americano de outros tempos, que "o que era bom para os Estados Unidos era bom para a América" - a que acrescentaria, hoje, "e para o resto do Mundo". Recuperava-se, assim, a "doutrina de Monroe", segundo a qual nenhum país poderia interferir na política externa dos Estados Unidos, cuja opinião - na voz de outro secretário de Estado - era "praticamente soberana" e que "o seu fiat era lei"... Este evidente sinal de desprezo por posições que, no entendimento do participante no Encontro de Cascais, se não eram coincidentes com os conceitos americanos de "moral objectiva", eram contrários à consciência moral do Ocidente, começaria por ser injusto logo a partir do facto de que toda a Europa alinhara inequivocamente ao lado dos Estados Unidos quando este foi agredido e desafiado pela organização terrorista e fundamentalista da Al Quaeda. Dir-se-ia então, com propriedade, que, tendo a "cruzada" terrorista de Bin Laden um cariz de "guerra santa", a Europa, o Ocidente e o Mundo podiam falar em "guerra de cultura", já que, desencadeada em nome de um Deus e um Bem (como tinham sido as "cruzadas" dos cristãos, séculos antes...) seria injusto, porque toda a Europa alinhou inequivocamente ao lado dos Estados Unidos. Mas, hoje, teria dito o mesmo esse participante, tendo como pano de fundo o Iraque, porventura o país islâmico mais "contaminado" pelos "padrões morais objectivos" do Ocidente, nos quais cabem liberdades de mercado e de religião e armas de destruição maciça (as verdadeiras "sementes do Mal" criadas e fornecidas pelo Ocidente)? Onde se revelaria o "choque de culturas", se não fossem evidentes, antes, os "choques de poderes" agora travestidos, em que Saddam Hussein se perfila como um messias restabelecedor da "Umma" árabe e George W. Bush como um césar policiador do mundo concebido como um conjunto de "soberanias limitadas" pelos interesses dos Estados Unidos? Neste momento histórico, alguma coisa ainda distingue os "padrões morais objectivos" dos vários países que se dizem portadores de uma denominada Cultura Ocidental, que afinal não se manifesta, sempre, da mesma maneira. A História dirá, mais uma vez, quais foram as vitórias do Bem e as de Pirro.
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